quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ali perto havia aldeias e montes, cujos moradores, tendo ouvido o estrondo das salvas, porventura acudiriam a saber o que era e, vendo que se dizia missa em igreja de gregos, certamente se seguiria algum escândalo!»

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O Breviário

«Certamente, aventou frei Zedilho, desencontraram-se de nós. Como viemos por outro caminho... Estão no mosteiro, de certeza. Vou ordenar que alguém vá por eles, disse o patrão. Passámos essa noite repousadamente, não nos cansando de contar a todos as maravilhas que tínhamos visitado, o que lhes causava admiração. O tempo estava muito claro e o mar bonançoso. Não obstante não faziam mostra de querer levantar vela.

Mestre Teodoro, perguntava frei Zedilho ao piloto, se temos tempo de feição, porque não levantamos âncora? Por duas razões, lhe respondeu ele. A primeira é que o patrão nunca partiria sem ter a bordo os vossos dois companheiros... Oh, meu Deus! Como me esquecia! Desculpai a pergunta. Mas se não houvesse essa razão de peso, outra haveria para não partirmos antes de lua cheia, que deve ser daqui a dois dias. Teremos de aguardar, a ver se com ela o tempo faz alguma mudança. Fazendo-a, então não havemos de partir tão cedo deste porto. Aí adiante temos de passar um golfo que não é para graças. Nele se têm perdido muitas naus.

No dia seguinte, que era véspera de Natal, quando Signor Nicolô se preparava para enviar ao mosteiro pelos dois franciscanos, apareceram, vindos de lá, dois caloiros, mandados pelo abade como lhes havíamos pedido. Traziam-nos muita fruta de espinho e outro refresco. Não estiveram no vosso mosteiro dois irmãos franciscanos?, perguntou o patrão. Que sim, que haviam estado, respondiam pensando tratar-se de mim e de frei Zedilho. Mas que tinham tomado por outro caminho a visitar antiqualhas.

O momento era de certa euforia. Trocavam-se presentes, fazendo agora nós toda a caridade possível aos dois caloiros, inclusivamente o tirar-se particular esmola para eles, dando cada um do que tinha. Ninguém notou, por isso, a confusão e o equívoco em que se estava caindo e os nossos espíritos eram serenos. Despediram-se os caloiros muito contentes e nós ficámos cheios de alegria, preparando a festa de Natal e esperando a nossa partida.

Em querendo anoitecer, ruido de cavaquinhos, violas, adufes, flautas, tambores, que sei eu, tudo de mistura, vem quebrar a monotonia a bordo e festival cortejo passeia-se por todo o convés da nau. São os patrões e oficiais das outras embarcações que também no porto estão aguardando tempo. Festejam o nascimento de Cristo, tangendo e cantando. Param de vez em quando, a combinar, muito ordeiramente, qual dos grupos vai cantar. É então possível ouvir lindas canções da natividade em francês, em italiano, em grego. Não deixa frei Zedilho os seus créditos por mãos alheias e, saindo um pouco da sua natural timidez, entoa, logo acompanhado pelos instrumentos músicos, um cantar castelhano que começa: Nacid en Belén un niño chiquitín hermoso como un serafín...

Apertam comigo para que também cante em português. Não me faço rogado, olha eu. Escolho, entre muitos hinos que sei, um muito vivo e mexido que tem o condão de pôr toda a gente a cantar: Pastores! Pastores! Vamos todos a Belém adorar o Deus-Menino que Nossa Senhora tem.

Preparamo-nos para a missa. Valha-me Deus que, enquanto me paramento, ainda com os ouvidos cheios daqueles cânticos de Natal, só me acode à lembrança aquele adágio que diz: Itali ululant, Hispani plangunt, Galli canunt, os Italianos uivam como cães quando cantam, os Espanhóis mostram chorar porque tudo são sentimentos e endoenças, mas os Franceses no seu cantar mostram prazer e alegria, coisa natural nos galos em todo o tempo e lugar...

Coube-me a mim celebrar a missa, ainda que havia de ser uma missa seca, por estarmos no mar, embora sobre âncora e porto seguro. Foi acompanhada com violas de arco, cravo e manicórdio. O mais da noite passou-se tangendo e cantando. O dia de Natal acordou festivo, as naus todas embandeiradas, a dispararem sua artilharia. O padre meu companheiro disse a missa de alva e, para a missa do dia, houve quem aventasse que se devia celebrar em terra, em uma ermidinha que estava algum tanto desviada do porto, mas os fidalgos gregos que vinham na nossa nau, o atalharam: Não o fizéssemos! Ali perto havia aldeias e montes, cujos moradores, tendo ouvido o estrondo das salvas, porventura acudiriam a saber o que era e, vendo que se dizia missa em igreja de gregos, certamente se seguiria algum escândalo!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,