O Breviário
«Certamente,
aventou frei Zedilho, desencontraram-se de nós. Como viemos por outro
caminho... Estão no mosteiro, de certeza. Vou ordenar que alguém vá por eles,
disse o patrão. Passámos essa noite repousadamente, não nos cansando de contar
a todos as maravilhas que tínhamos visitado, o que lhes causava admiração. O
tempo estava muito claro e o mar bonançoso. Não obstante não faziam mostra de
querer levantar vela.
Mestre
Teodoro, perguntava frei Zedilho ao piloto, se temos tempo de feição, porque
não levantamos âncora? Por duas razões, lhe respondeu ele. A primeira é que o
patrão nunca partiria sem ter a bordo os vossos dois companheiros... Oh, meu
Deus! Como me esquecia! Desculpai a pergunta. Mas se não houvesse essa razão de
peso, outra haveria para não partirmos antes de lua cheia, que deve ser daqui a
dois dias. Teremos de aguardar, a ver se com ela o tempo faz alguma mudança.
Fazendo-a, então não havemos de partir tão cedo deste porto. Aí adiante temos
de passar um golfo que não é para graças. Nele se têm perdido muitas naus.
No
dia seguinte, que era véspera de Natal, quando Signor Nicolô se preparava para
enviar ao mosteiro pelos dois franciscanos, apareceram, vindos de lá, dois
caloiros, mandados pelo abade como lhes havíamos pedido. Traziam-nos muita
fruta de espinho e outro refresco. Não estiveram no vosso mosteiro dois irmãos
franciscanos?, perguntou o patrão. Que sim, que haviam estado, respondiam pensando
tratar-se de mim e de frei Zedilho. Mas que tinham tomado por outro caminho a
visitar antiqualhas.
O
momento era de certa euforia. Trocavam-se presentes, fazendo agora nós toda a
caridade possível aos dois caloiros, inclusivamente o tirar-se particular
esmola para eles, dando cada um do que tinha. Ninguém notou, por isso, a
confusão e o equívoco em que se estava caindo e os nossos espíritos eram
serenos. Despediram-se os caloiros muito contentes e nós ficámos cheios de
alegria, preparando a festa de Natal e esperando a nossa partida.
Em
querendo anoitecer, ruido de cavaquinhos, violas, adufes, flautas, tambores,
que sei eu, tudo de mistura, vem quebrar a monotonia a bordo e festival cortejo
passeia-se por todo o convés da nau. São os patrões e oficiais das outras
embarcações que também no porto estão aguardando tempo. Festejam o nascimento
de Cristo, tangendo e cantando. Param de vez em quando, a combinar, muito
ordeiramente, qual dos grupos vai cantar. É então possível ouvir lindas canções
da natividade em francês, em italiano, em grego. Não deixa frei Zedilho os seus
créditos por mãos alheias e, saindo um pouco da sua natural timidez, entoa,
logo acompanhado pelos instrumentos músicos, um cantar castelhano que começa: Nacid
en Belén un niño chiquitín hermoso
como un serafín...
Apertam
comigo para que também cante em português. Não me faço rogado, olha eu.
Escolho, entre muitos hinos que sei, um muito vivo e mexido que tem o condão de
pôr toda a gente a cantar: Pastores!
Pastores! Vamos todos a Belém adorar
o Deus-Menino que Nossa Senhora
tem.
Preparamo-nos
para a missa. Valha-me Deus que, enquanto me paramento, ainda com os ouvidos cheios
daqueles cânticos de Natal, só me acode à lembrança aquele adágio que diz: Itali
ululant, Hispani plangunt, Galli canunt, os Italianos uivam como cães
quando cantam, os Espanhóis mostram chorar porque tudo são sentimentos e
endoenças, mas os Franceses no seu cantar mostram prazer e alegria, coisa
natural nos galos em todo o tempo e lugar...
Coube-me a mim celebrar a missa,
ainda que havia de ser uma missa seca, por estarmos no mar, embora sobre âncora
e porto seguro. Foi acompanhada com violas de arco, cravo e manicórdio. O mais
da noite passou-se tangendo e cantando. O dia de Natal acordou festivo, as naus
todas embandeiradas, a dispararem sua artilharia. O padre meu companheiro disse
a missa de alva e, para a missa do dia, houve quem aventasse que se devia
celebrar em terra, em uma ermidinha que estava algum tanto desviada do porto,
mas os fidalgos gregos que vinham na nossa nau, o atalharam: Não o fizéssemos!
Ali perto havia aldeias e montes, cujos moradores, tendo ouvido o estrondo das
salvas, porventura acudiriam a saber o que era e, vendo que se dizia missa em
igreja de gregos, certamente se seguiria algum escândalo!» In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,