« Aquele segundo eu não podia dar-lhe naquele momento, como era possível, notava com força as duas presenças que quase me paralisavam e emudeciam, uma fora e outra dentro, diante de meus olhos e diante das minhas costas, como era possível, sentia-me obrigado para com ambas, tinha de haver um erro ali, eu não podia me sentir culpado para com minha mulher por nada, por uma demora mínima na hora de atendê-la e acalmá-la, e menos ainda para com uma desconhecida ultrajada, por mais que ela acreditasse que me conhecia e que era eu quem a ultrajava. Ela estava fazendo malabarismos para voltar a pôr o sapato sem pisar no chão com o pé descalço. A saia era um pouco apertada para realizar essa operação com êxito, seus pés de ossos demasiado compridos, e enquanto tentou não gritou, mas resmungava, não podemos estar muito atentos aos outros enquanto tratamos de recompor a aparência. Não teve outro remédio que apoiar o pé, que se sujou no acto. Voltou a levantá-lo como se o chão a houvesse contaminado ou queimado, sacudiu a poeira como Luísa sacudia a areia seca nas praias justo antes de abandoná-las, às vezes ao cair da noite; enfiou os dedos do pé no sapato, a parte da frente; depois, com o indicador (da mão livre da bolsa), ajustou a tira do calcanhar que sobressaía sob aquela tira (a tira do soutien de Luísa devia continuar caída, mas eu não a via agora). Suas pernas robustas pisaram outra vez com firmeza, batendo no pavimento como se fossem cascos. Deu mais três passos sem erguer ainda a vista e, quando a ergueu, quando abria a boca para me insultar ou me ameaçar e iniciava pela enésima vez o gesto preênsil, garra de leão, aquele que agarrava e significava Você não vai se livrar de mim ou Vai comigo para o inferno, suspendeu-o no ar, e o braço nu ficou congelado no alto, como o de um atleta.
Vi sua axila recém-raspada, tinha
se aprontado toda para o encontro. Olhou uma vez mais à minha esquerda e olhou
para mim e olhou à minha esquerda e para mim. Mas o que está acontecendo?,
voltou a perguntar Luísa de sua cama. Sua voz era temerosa, expressava um temor
misto, interior e exterior, tinha medo do que estava acontecendo em seu corpo,
tão longe de casa, e do que não sabia que estava acontecendo, ali na sacada e
na rua, ou que estava acontecendo comigo e não com ela, os casais logo se
acostumam a que tudo aconteça com ambos. Era de noite e nosso quarto continuava
às escuras, devia sentir-se tão ofuscada que nem acendia o abajur da
mesinha-de-cabeceira a seu lado. Estávamos numa ilha.
A mulher da rua ficou com a boca
aberta sem dizer nada e levou a mão ao rosto, a mão que foi deslizando
decepcionada, envergonhada e mansa para baixo desde cima. Já não havia
mal-entendido. Ai, desculpe, disse-me ao cabo de uns segundos. Confundi o
senhor com outra pessoa. Num instante toda a fumaça tinha-se dissipado e ela
havia compreendido, isso era o mais grave, que tinha de continuar esperando,
talvez onde estivera de início, não mais sob as sacadas, teria de voltar ao
ponto escolhido originalmente, ao outro lado da rua além da esplanada, para lá
arrastar com celeridade e ódio seu salto afilado após seus dois ou três passos,
três machadadas e espora, ou espora depois dos machados. Era uma pessoa
repentinamente desarmada, dócil, perdera toda a sua cólera e suas energias, e
creio que não lhe importava tanto o que eu pudesse pensar de seu engano e de
seu mau génio, afinal era eu um desconhecido a seus olhos verdes, quanto se dar
conta de que seu encontro ainda corria o risco de não acontecer.
Fitava-me com seu olhar cinzento
de repente absorto, com um pouco de desculpa e um pouco de indiferença, de
desculpa o justo necessário, pois era a amargura que prevalecia. Ir embora ou
esperar de novo, depois de ter concluído a espera. Não se preocupe, disse eu. Com
quem está falando?, perguntou-me Luísa, que sem minha assistência ia saindo de
seu estupor, embora não das trevas (a voz era um pouco menos rouca e sua
pergunta mais concreta; talvez não estivesse entendendo que era noite).
Mas ainda não respondi nem me
aproximei da cama para sossegá-la e arrumar os lençóis para ela, porque nesse
momento abriram ruidosamente as portas da sacada à minha esquerda e vi
aparecerem dois braços de homem que se apoiaram na balaustrada de ferro, ou a
seguraram como se fosse uma barra móvel, e chamaram: Miriam!
A mulata, indecisa e confusa,
tornou a olhar para cima, agora já sem dúvida à minha esquerda, sem dúvida para
a sacada que se abrira e para os braços fortes que eram tudo o que eu via, os
braços compridos do homem em mangas de camisa, as mangas arregaçadas, brancas,
os braços peludos, tanto ou mais do que os meus. Eu havia deixado de existir,
desaparecera, também estava de mangas arregaçadas, tinha levantado as mangas ao
sair à sacada para debruçar-me, fazia pouco, mas agora eu havia desaparecido
por ser eu outra vez, isto é, por ser para ela ninguém. No anular da sua mão
direita o homem trazia uma aliança como a minha, só que eu já a usava na
esquerda, fazia duas semanas, pouco tempo, não me acostumara. Também o relógio,
preto e grande, aquele homem usava no pulso do mesmo braço e eu, em
compensação, no do outro. Devia ser canhoto». In Javier Marías, Coração
Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.
Cortesia de RelógioD’Água/JDACT
JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,