Prólogo
«Duas horas antes do grave
acidente que o atingiu, Salvador Palma Lobo anunciou aos amigos que estava a
morrer de amor. Tenho a morte na garganta, a querer sair, e o coração negro,
como uma gruta sem luz. Há um ano que o sol deixara de nascer dentro dele, há
um ano que o sangue lhe adoecera de tristeza nas veias. Desde que perdera
Joana, morrer lentamente havia sido o seu destino.
Quando fez aquele inesperado e
mórbido anúncio, estávamos, eu, ele e mais dois amigos, num barco, a caminho do
Algarve. Tínhamos partido de Lisboa na véspera, a bordo de um belo iate a
motor, emprestado por Conrad, um amigo inglês de Salvador. No sábado à noite,
navegávamos próximo de Sines. Ao longe, na costa, erguiam-se as grandes
chaminés das refinarias, e uma sarça flamejante volteava no alto de uma delas,
chicoteando o ar com a fúria irregular das suas labaredas. Mais adiante, os
contornos cinzentos da enorme central eléctrica feriam o céu, como se fossem
espigões tubulares desejosos de magoar as abóbadas. Na linha da terra, as luzes
das estradas estendiam-se, como uma tiara de diamantes laranja.
A nossa primeira noite no mar
fora de excessos, de bebidas misturadas e, no caso de Salvador, de muita droga.
No sábado, apesar do intenso calor, o meu melhor amigo não tomara banhos no mar
nem largara a sua omnipresente garrafa de whisky. Quando nos falou em amor e
morte estava exausto, parado e sério, e muito pálido, como se tivesse
envelhecido cem anos de repente. O seu habitual sorriso, com a boca aberta e a
língua de fora, como um cão grande e feliz, desaparecera. Tinha os olhos
raiados de sangue e as olheiras escuras e o cabelo desalinhado e a barba por
fazer.
Quando me via assim, ressacado, a
minha mãe costumava dizer: Pareces um bicho.
Naquele momento, Salvador parecia
um bicho. Um animal selvagem, sujo e esgotado e abatido. Não eram só a amargura
ou as substâncias fortes que o deixavam naquela profunda prostração, mas também
o calor, o imenso bafo quente pousado sobre nós. Era Agosto e uma vaga de calor
pesada e pastosa caíra sobre Portugal como uma maldição bíblica. De dia, as temperaturas
haviam chegado aos quarenta e cinco graus, e mesmo ali, na noite do mar, estava
tão quente como no inferno.
Rui e Lourenço, quando ouviram
falar em amor e morte, sorriram, para disfarçar o alarme sentido, e proclamaram
que nos nossos tempos já ninguém morria de amor e já não existiam Romeus e
Julietas. Para mais num homem! Os homens não sofrem desses males, declararam,
isso é coisa de mulheres, disseram a rir. Só eu não me ri.
Por mais que me digam que já
ninguém morre de amor, não acredito. Conheço a história de Salvador Palma Lobo.
É certo que ninguém sabe para o
que nasce uma pessoa, mas eu sei que mais cedo ou mais tarde isto lhe iria
acontecer, pois no caso dele a palavra desgosto é destino, o amor e a morte
estão-lhe nos genes. A hereditariedade marca-nos, como o ferro de uma
ganadaria. Os nossos pais e avós e bisavós são os únicos deuses que conhecemos
pelo nome próprio. Os Palma Lobo morreram todos de amor. O bisavô, o avô, o
pai, e agora Salvador. Quatro gerações de machos, uma original linhagem
masculina de que Salvador é o último exemplar.
Mas para morrer de amor é preciso
primeiro morrer. Duas horas depois daquele anúncio soturno, o pré-aviso de
Salvador confirmou-se. Subitamente, deixou cair a garrafa de whisky e teve um
ataque. Como se tivesse levado um coice
de um cavalo invisível, esticou-se num espasmo, para cima e para trás, e depois
dobrou-se, tombando para a frente, até cair finalmente no convés, com estrondo,
no meio dos cacos de vidro da garrafa partida. Foi tudo demasiado rápido.
Num momento falávamos e no
momento seguinte ele estava no chão, em posição fetal, a espumar baba da boca e
a revirar os olhos, o corpo a estremecer com violência, como se tivesse muita
febre ou muito frio. Durante breves segundos, Lourenço, Rui e eu pensámos que
ele estava a brincar, mas depressa o pânico se apoderou de nós. O nosso amigo
estava mesmo a morrer à nossa frente, e aquela não era a morte romântica e
teórica de que ele falara antes, mas uma morte concreta, física e assustadora.
Chamámos a ambulância pela rádio e regressámos a terra depressa, o barco com os
motores no máximo, e atirámos os pacotes de droga pela borda fora, com medo da
polícia. Atracámos no porto de Sines, angustiados, e a equipa de emergência
médica subiu a bordo, com desfibriladores e tubos e garrafas de oxigénio e urgência,
envolvendo o nosso amigo. Transportaram-no para o cais numa maca e depois enfiaram-no
numa ambulância, na qual só eu o pude acompanhar. Às primeiras horas da madrugada
de domingo, Salvador dava entrada num hospital de Lisboa, nos cuidados intensivos,
e a sua morte, anunciada pelo próprio umas horas antes, tornava-se lentamente uma
realidade». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008,
ISBN 978-972-461-802-9.
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