Mary
«A afirmação tinha um duplo
sentido, pois ele andava a namoriscar uma secretária da Embaixada americana,
Janice. É bonita, disse eu, enquanto passava um dedo sobre a lâmina. Cuidado,
não te cortes, avisou. É tão afiada que a casca das maçãs fica fina como uma folha
de papel.
Admirei a arma e depois devolvi-a
ao meu amigo, que a recolocou no coldre com cuidado, guardando o conjunto no
bolso interior do casaco. Deu novo gole na aguardente e pousou o copo. Baixou a
voz:
Os alemães andam a queixar-se
cada vez mais ao capitão Lourenço. A semana passada, um padre do Barreiro foi
chamado à PVDE. Acusaram-no de fazer sermões contra a Alemanha. Reflecti. Se
eles chegavam ao ponto de perseguir padres, fazer o mesmo ao coronel Bowles era
fácil. Michael afastou-se do balcão e eu segui-o. Quando saímos para a rua,
perguntou-me: E como vai a Carminho?
Michael nunca antes me perguntara
por Carminho. Estaria a fazê-lo apenas porque se sentira enciumado com o meu
caso com Mary? Ou estaria a tentar proteger-me, recordando-me a minha noiva
oficial para me afastar de uma relação com Mary, que comportava riscos, devido
às imprudências do coronel? Fomos ontem ao cinema, a Carminho, a irmã e eu.
Fomos ver a estreia de Rebecca, do Alfred Hitchcock. Estavam lá o Lawrence
Olivier e a mulher, a Vivien Leigh, que vieram de propósito cá para fazer
publicidade ao filme. Michael não ficou impressionado. Era comum, naqueles
tempos, virem a Lisboa muitos famosos de Hollywood. A mando da censura, os
jornais davam enorme destaque às suas estadas, com o óbvio propósito de
distrair a população. Ela tem andado bastante ocupada - continuei. Organizou
uma festa para as vítimas do ciclone, e conseguiu que alguns estrangeiros
participassem. Até a Josephine Baker cantou!
Os artistas estrangeiros não
podiam actuar em Portugal, tal como os refugiados estavam impedidos de trabalhar.
Porém, o general na reserva Joaquim Silva, pai de Carminho, era amigo de
Salazar, e movera as suas influências. Assim, uma excepção foi concedida, e o
público ouviu a voz de Josephine Baker, uma célebre cantora da Broadway, que
fugira de Paris depois de ter sido acusada de espionagem pela Gestapo. E viva
Salazar, ironizou Michael.
Como correu bem, continuei, a
Carminho quer organizar mais espectáculos. Falou com umas pessoas do jornal O
Século, e formaram uma comissão. Do Século? Esse é dos nossos, comentou
Michael, entusiasmado. Sabes o que se passou lá? Contou-me que um dos
jornalistas enchera as instalações de emblemas da RAF e bandeirinhas
portuguesas e inglesas, com o ámen do director. Para o meu amigo, era uma pequena
mas saborosa vitória. Acrescentei que a comissão já tinha uma canção pronta, um
hino para os espectáculos:
O título é: Obrigado, Portugal!
Michael estacou de repente: Obrigado, Portugal? Obrigado, Portugal, porquê? Abri
os braços: Então não estamos a receber bem os refugiados? Michael abanou a
cabeça, desagradado: Jack, não me insultes. Não repitas a propaganda de
Salazar. Ripostei: Propaganda? Ora essa, então não somos o único país da Europa
onde eles podem viver em paz e sossego? Paz sim, mas sossego?, irritou-se
Michael. Aos judeus, colocam-lhes um J
no passaporte e, se puderem deixam-nos na fronteira! Aos refugiados, quando não
os podem mandar imediatamente para o navio, a caminho do Brasil e da América,
enviam-nos para as praias! Para a Ericeira, para a Costa de Caparica, para a
Figueira da Foz. Pelo menos apanham sol, e tomam banhos de mar!, exclamei.
Michael recomeçou a andar,
indignado: E os que ficam por aqui são depenados! Até para irem à casa de banho
nos cafés têm de pagar! Os donos das pensões cobram-lhes fortunas, e os
senhorios pedem um dinheirão por um quartito! Já para não falar num apartamento
mobilado! Infelizmente, era verdade. Muitos portugueses lucravam com a situação
dos refugiados. Às vezes, mal chegavam às fronteiras, compravam-lhes a preços
insultuosos as jóias, os casacos, até as roupas. Obrigado, Portugal, repetiu
Michael, com desdém. E os vistos, e os bilhetes? Há imensos que são enganados
pelas agências: pagam mais de 50 contos pelos bilhetes e pelos vistos e ficam a
ver os navios partir sem eles!
Suspirou fundo. Estávamos a
passar em frente de um quiosque, a caminho dos Restauradores. Michael parou e
observou os jornais. Olha para isto! Vês como os nazis são fortes neste país?
Repara nisto, e apontou com o dedo para as bancas. O Sinal, A Voz, A Acção é
tudo deles! A Esfera também! O Diário de Notícias e o Diário da Manhã, a mesma
coisa, tal como aqueles ali, e apontou para o Diário Popular e o Jornal de Notícias,
resmungando: Tudo boche. E nós, o que é que temos? Apontei noutra direcção: Bem,
temos o Anglo Portuguese News! E não disseste que O Século era dos nossos?» In
Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN
978-972-462-174-6.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Literatura, II Guerra Mundial, Conhecimento,