«Vamos precisar destes equipamentos para trabalhar, anunciou a Rocha às minhas costas. Espero que esteja certo capitão! Quem deu permissão para entrar no meu escritório e organizar este baderna? O prefeito Ramondino. Mas podiam me consultar! Montamos o equipamento à noite, quando você já saíra. Em sua voz não havia nem uma pequena nota de aflição ou sentimento; se limitava a me informar e ponto, como se tudo o que ele fizesse estivesse acima de qualquer discussão.
Esplêndido! Realmente
esplêndido! Reclamei carregada de rancor. Você deseja começar a trabalhar ou
não? Girei como se me tivesse esbofeteado e o olhei com todo o desprezo de que
era capaz. Terminemos o quanto antes com isto. Como você quiser, murmurou
arrastando muito os erres. Desabotoou a jaqueta e, de algum lugar
incompreensível, apanhou o avultado dossiê de capas negras que monsenhor
Tournier me mostrara o dia anterior. É todo seu, disse, me oferecendo. E você
vai fazer o quê enquanto eu trabalho? Usarei o computador. Com que objectivo?
Perguntei, estranhando. Meu analfabetismo informático era um problema pendente
que sabia que algum dia teria de enfrentar, mas, no momento, como boa erudita,
me encontrava muito a gosto depreciando essas diabólicas maquininhas.
Com objectivo de
resolver qualquer dúvida que você tenha e dar toda a informação existente sobre
qualquer tema que deseje. E ficou nisso. Comecei examinando as fotografias.
Eram muitas, trinta exactamente, e vinham numeradas e classificadas por ordem
temporal, quer dizer, do princípio ao fim da autópsia. Após uma olhada inicial,
selecionei aquelas em que se via estendido sobre uma mesa metálica, o corpo do
etíope nas posições de decúbito supino e decúbito prono, boca para cima e boca
para baixo. À primeira vista, o mais destacável era a fractura dos ossos da
pélvis, pelo o arco pouco natural que delineavam as pernas, e uma tremenda
lesão na área parietal direita do crânio que deixara descoberto, entre pedaços
de osso, a gelatina cinza do cérebro. Descartei, por inúteis, o restante das
imagens, pois, em que pese que o cadáver apresentasse várias lesões internas,
não achava que fossem relevantes para meu trabalho. Fixei-me, isso sim, nas
que, provavelmente por causa do impacto, mutilara a língua com os dentes.
Aquele homem jamais
poderia se fazer passar por outra coisa distinta do que era, um etíope, pois
seus traços étnicos eram muito apurados. Como a maioria deles, era muito magro
e espigado, de carnes fibrosas, e a cor de sua pele se destacava por ser
demasiado escura. As feições de seu rosto, com certeza, constituíam a prova
definitiva e delactora de sua origem abissínia: pômulos altos e muito marcados,
grandes olhos negros, que apareciam abertos nas fotografias, com um resultado impressionante,
fronte ampla e ossuda, lábios grossos e nariz fino, quase de perfil grego.
Antes que raspassem a parte da cabeça que permanecia íntegra, apresentava um cabelo
encaracolado, bastante sujo e manchado de sangue; depois de raspado, no centro
mesmo do crânio, podia se ver com clareza uma fina cicatriz com a forma da
letra grega sigma maiúscula.
Naquela manhã não fiz outra coisa além de observar, uma e outra
vez, as terríveis imagens, repassando qualquer detalhe que me resultasse
significativo. As cicatrizes se destacavam sobre a pele como linhas de estradas
num mapa, algumas carnosas e avultadas, muito desagradáveis, e outras
estreitas, quase imperceptíveis, como fios de seda. Mas, todas, sem excepção,
apresentavam uma coloração rosada, até avermelhada em alguns pontos, que lhes
conferia o repulsivo aspecto de enxertos de pele branca sobre pele negra. No
meio da tarde, tinha o estômago embrulhado, a cabeça embotada e a mesa cheia de
anotações e esquemas das cicatrizes do falecido». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005,
Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.
JDACT, Matilde Asensi, Literatura, Vaticano, Conhecimento,