O Breviário
«De
encontro às rochas via-se a nau partida, meia submersa, toda ela pelas junturas
desfeitas tangendo com o movimento das ondas, ostentando ainda num pedaço da
popa o seu nome, Quirina!
Restos de corpos desmembrados jaziam entre tábuas ou pendiam, presos por
fragmentos de roupa esfarrapada de algum cavilhame desventrado. Acenava
tristemente ao vento que amainara uma tira de vela rasgada. Mastros e vergas,
desconjuntados e estilhaçados, boiavam nas águas, precariamente ligados ao
tombadilho. Na praia rolavam corpos na fímbria espumosa das ondas e outros,
lançados já do mar, secavam na areia nus, inchados, esquálidos, de borco ou de
barriga para o ar, cheios de pútrido mosquedo, apodrecendo com um fétido e
insuportável cheiro. Debicavam já abutres nos cadáveres mais afastados de gente
viva e outros pousavam, rondando, nas árvores e penedias próximas, à espera do
sinistro festim.
Estando
nós por algum tempo olhando em silêncio aquele lastimável destroço, disse-nos o
patrão da nossa nau: Senhores, é mais tempo de obrar que de olhar. Movidos
desta palavra, começámos todos a acudir aos feridos, lavando chagas com vinho e
fazendo com muita diligência tudo o que o cirurgião mandava, procurando roupas
para a nudez, pão para a fome, palavras de conforto para o desconsolo de alma,
e com a ajuda da muita gente que tinha acorrido procedeu-se pelo dia fora ao
enterramento dos mortos. Era quase fim da tarde quando, tendo preparado com
dois pobres lenhos uma cruz para uma das últimas sepulturas, dei comigo a olhar
fixamente a cara do morto. Estava nu, mas não me foi difícil recordar a figura
viva e inquieta, vestida de peles, que mimava um frade que passeia de um lado
para o outro lendo o seu breviário de capas de carneira castanhas, cantos de
prata e letras gravadas a ouro. Era Argirópolos.
Perante
a morte, perdoei-lhe o mal que, querendo fazer-me a mim, causara a meus irmãos
Pietro e Bertino e, quando a última pazada de terra foi atirada sobre o seu
corpo, coloquei-lhe na cabeceira da campa o tosco crucifixo feito de lascas dos
madeiros da nau destruída.
O
rei de Chipre
Emmanuelisque
nomen et Lusítanae gentis virtutem laudibus summis exornavit.
Exaltou
com os maiores louvores o nome de Manuel e o valor da gente lusitana. (Jerónímo
Osório, De Rebus Emmanuelis Gestis)
Não
mais que uma alfândega e casas térreas para recolher mercadorias, um pequeno
hospital e uma igreja de São Lázaro, mas o branco vivo das paredes, quase a
cegar os olhos, no verde-azul de montanha e céu, ria alegremente para a baía em
que se espelhava, em chapadas e laminações de cal ondulante. Havia barcos de
olhos arregalados no porto e as algas voluteavam e rendilhavam marulhos
salgados, espumosos, por entre cintilações de prata e ouro. Acenavam perto,
rente à água, asas lentas de gaivotas, dando as boas-vindas.
Voltava
à minha boa disposição e aos meus sonhos, à paz comigo próprio. Mas seria eu o
mesmo? Sentia-me diferente por dentro. Quantas coisas haviam passado, marcado
para sempre a minha alma!... Tínhamos chegado a Salinas, ou Salamina como dizem
outros, depois de três dias em que o vento nos fizera negaças, ora arremedando
soprar de feição ora virando contrário. Fomos até obrigados a parar a meio
caminho, em Limison. Mas eis-nos chegados a Salinas! Grande azáfama de carregar
e descarregar mercadorias, que este é o principal porto da ilha de Chipre, o
mais frequentado por navios estrangeiros e onde necessariamente hão-de aportar
as naus venezianas que vêm a estas partes. Aguarda-nos uma pequena multidão de
pessoas quando atracamos. Saídos ao cais, dirigem-se-nos com expressão e
palavras aflitas, pedindo ajuda.
Aiuto,
aiuto, signori!
Siamo pellegrini! Apontam-nos no porto, sem qualquer espécie de
actividade, a nau dos peregrinos do ano passado, que, por desordem e pouca
diligência do patrão, tinha ali invernado, com grande detrimento e prejuízo dos
romeiros, no regresso da Terra Santa. Vendo-se enganados, os ricos buscaram seu
remédio por onde puderam, indo-se para Veneza em outras embarcações, a
queixarem-se à Senhoria da sem-razão e quebra de contrato que lhes fora feita;
os pobres aqui ficaram na ilha, padecendo mil necessidades e misérias,
aguardando que aquela mesma nau que os trouxera os tornasse a levar de regresso
na Primavera que está ai a chegar.
Aíuto,
aiuto, signori!
Siamo pellegrini! Abbiamo fame e miseria! Ajudai-me, irmão!,
sinto-me puxar pela manga do hábito esta doce voz portuguesa. É uma preta dos
seus quarenta anos, de alma branca como arminho segundo depreendi da sua muita
virtude, confessando-a em Veneza antes da sua partida para a Terra Santa. É
Deus que vos envia para acudir à nossa necessidade!
Natural da Guiné, criada em
Portugal, vendo-se um dia forra, não descansou enquanto não fez esta santa
jornada, não pedindo de porta em porta, como muitos fazem, mas com o suor do
seu rosto. Deu-se antes, alguns anos, a lavar roupa por dinheiro, até amealhar
o que lhe pareceu bastar para a peregrinação. Não podia, todavia, contar com o
percalço de uma tão prolongada paragem em Chipre, agravada pela total ausência
do apoio a que, por contrato, os serviços da nau se haviam obrigado, e viu-se
sem dinheiro sequer para comer. Mas como foi possível um tal desleixo do
patrão?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,