terça-feira, 30 de janeiro de 2024

No 31. A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ajudai-me, irmão!, sinto-me puxar pela manga do hábito esta doce voz portuguesa. É uma preta dos seus quarenta anos, de alma branca como arminho segundo depreendi da sua muita virtude, confessando-a em Veneza…»

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O Breviário

«De encontro às rochas via-se a nau partida, meia submersa, toda ela pelas junturas desfeitas tangendo com o movimento das ondas, ostentando ainda num pedaço da popa o seu nome, Quirina! Restos de corpos desmembrados jaziam entre tábuas ou pendiam, presos por fragmentos de roupa esfarrapada de algum cavilhame desventrado. Acenava tristemente ao vento que amainara uma tira de vela rasgada. Mastros e vergas, desconjuntados e estilhaçados, boiavam nas águas, precariamente ligados ao tombadilho. Na praia rolavam corpos na fímbria espumosa das ondas e outros, lançados já do mar, secavam na areia nus, inchados, esquálidos, de borco ou de barriga para o ar, cheios de pútrido mosquedo, apodrecendo com um fétido e insuportável cheiro. Debicavam já abutres nos cadáveres mais afastados de gente viva e outros pousavam, rondando, nas árvores e penedias próximas, à espera do sinistro festim.

Estando nós por algum tempo olhando em silêncio aquele lastimável destroço, disse-nos o patrão da nossa nau: Senhores, é mais tempo de obrar que de olhar. Movidos desta palavra, começámos todos a acudir aos feridos, lavando chagas com vinho e fazendo com muita diligência tudo o que o cirurgião mandava, procurando roupas para a nudez, pão para a fome, palavras de conforto para o desconsolo de alma, e com a ajuda da muita gente que tinha acorrido procedeu-se pelo dia fora ao enterramento dos mortos. Era quase fim da tarde quando, tendo preparado com dois pobres lenhos uma cruz para uma das últimas sepulturas, dei comigo a olhar fixamente a cara do morto. Estava nu, mas não me foi difícil recordar a figura viva e inquieta, vestida de peles, que mimava um frade que passeia de um lado para o outro lendo o seu breviário de capas de carneira castanhas, cantos de prata e letras gravadas a ouro. Era Argirópolos.

Perante a morte, perdoei-lhe o mal que, querendo fazer-me a mim, causara a meus irmãos Pietro e Bertino e, quando a última pazada de terra foi atirada sobre o seu corpo, coloquei-lhe na cabeceira da campa o tosco crucifixo feito de lascas dos madeiros da nau destruída.

O rei de Chipre

Emmanuelisque nomen et Lusítanae gentis virtutem laudibus summis exornavit.

Exaltou com os maiores louvores o nome de Manuel e o valor da gente lusitana. (Jerónímo Osório, De Rebus Emmanuelis Gestis)

Não mais que uma alfândega e casas térreas para recolher mercadorias, um pequeno hospital e uma igreja de São Lázaro, mas o branco vivo das paredes, quase a cegar os olhos, no verde-azul de montanha e céu, ria alegremente para a baía em que se espelhava, em chapadas e laminações de cal ondulante. Havia barcos de olhos arregalados no porto e as algas voluteavam e rendilhavam marulhos salgados, espumosos, por entre cintilações de prata e ouro. Acenavam perto, rente à água, asas lentas de gaivotas, dando as boas-vindas.

Voltava à minha boa disposição e aos meus sonhos, à paz comigo próprio. Mas seria eu o mesmo? Sentia-me diferente por dentro. Quantas coisas haviam passado, marcado para sempre a minha alma!... Tínhamos chegado a Salinas, ou Salamina como dizem outros, depois de três dias em que o vento nos fizera negaças, ora arremedando soprar de feição ora virando contrário. Fomos até obrigados a parar a meio caminho, em Limison. Mas eis-nos chegados a Salinas! Grande azáfama de carregar e descarregar mercadorias, que este é o principal porto da ilha de Chipre, o mais frequentado por navios estrangeiros e onde necessariamente hão-de aportar as naus venezianas que vêm a estas partes. Aguarda-nos uma pequena multidão de pessoas quando atracamos. Saídos ao cais, dirigem-se-nos com expressão e palavras aflitas, pedindo ajuda.

Aiuto, aiuto, signori! Siamo pellegrini! Apontam-nos no porto, sem qualquer espécie de actividade, a nau dos peregrinos do ano passado, que, por desordem e pouca diligência do patrão, tinha ali invernado, com grande detrimento e prejuízo dos romeiros, no regresso da Terra Santa. Vendo-se enganados, os ricos buscaram seu remédio por onde puderam, indo-se para Veneza em outras embarcações, a queixarem-se à Senhoria da sem-razão e quebra de contrato que lhes fora feita; os pobres aqui ficaram na ilha, padecendo mil necessidades e misérias, aguardando que aquela mesma nau que os trouxera os tornasse a levar de regresso na Primavera que está ai a chegar.

Aíuto, aiuto, signori! Siamo pellegrini! Abbiamo fame e miseria! Ajudai-me, irmão!, sinto-me puxar pela manga do hábito esta doce voz portuguesa. É uma preta dos seus quarenta anos, de alma branca como arminho segundo depreendi da sua muita virtude, confessando-a em Veneza antes da sua partida para a Terra Santa. É Deus que vos envia para acudir à nossa necessidade!

Natural da Guiné, criada em Portugal, vendo-se um dia forra, não descansou enquanto não fez esta santa jornada, não pedindo de porta em porta, como muitos fazem, mas com o suor do seu rosto. Deu-se antes, alguns anos, a lavar roupa por dinheiro, até amealhar o que lhe pareceu bastar para a peregrinação. Não podia, todavia, contar com o percalço de uma tão prolongada paragem em Chipre, agravada pela total ausência do apoio a que, por contrato, os serviços da nau se haviam obrigado, e viu-se sem dinheiro sequer para comer. Mas como foi possível um tal desleixo do patrão?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,