O Breviário
«Para
se comerem tira-se-lhes a casca, que é como a do figo mas de cor citrina.
Partidos pelo meio ou de través, têm uma cruz em forma de tê. Afirmam orientais
e Palestinos ser aquele o fruto proibido de que Adão comeu. Eu creio serem
estas as bananas do nosso São Tomé, segundo a informação que me têm dado delas
os que as viram e comeram. E para que falar dos vinhos de Chipre, tão nomeados
e louvados em todo o Oriente, se a esposa nos Cantares de Salomão os louva com estas palavras: Botrus
Cypri dilectus meus mihi?
Neste
espaço de tempo, tomou tanta amizade connosco um mancebo grego, de nome
Constantim Polachi, morador numa aldeia chamada Thimo, distante de Pafo uma
grande milha, que não podia passar um dia sem nos vir ver. Convidava-nos para
comer em sua casa, provia-nos de tudo o que de melhor havia na terra, sem
interesse algum. Como não sabíamos o romeno nem ele o veneziano, só nos
entendíamos por meio de intérprete. Esta dificuldade de entendimento arreliava
Constantim, que às vezes, quando estávamos à mesa, tomava uma faca na mão e com
a outra mão tirava fora a língua e arremedava cortá-la, dizendo que lhe vinha
essa tentação por não ter palavras para exprimir quanta amizade nos tinha.
Três
dias depois de estarmos em Pafo, regressámos à nau. O tempo mostrava-se algum
tanto bonançoso e nós precisávamos de saber a determinação do patrão. Mas fomos
encontrar todos metidos e enfrascados em suas vendas e mercancias, com mais
vagar do que desejáramos. Amanhã, proponho eu ao meu companheiro que já se
encontra deitado em seu catre, enrodilhado na sua manta, vamos visitar outro
ponto da ilha? Com todo o prazer, irmão Pantaleão, responde bocejando cheio de
sono e deixando resvalar as camândulas por entre os dedos. Ressonava. Eu também
não tardei a adormecer. Mas o dia seguinte esforçou-se tanto o vendaval e o mar
começou a empolar-se de tal maneira e a embravecer que, acordando
estremunhados, cuidámos que nos iríamos perder naquele porto. A nau estava
apenas com duas âncoras, mas, vendo o perigo, ordenou o piloto que lançassem
mais duas, uma das quais era a que os Venezianos chamam âncora mestra, de
tamanho e peso tão descomunal que é necessária toda a gente da nau para a
levantar e largar. Só a usam em casos de tempestade extrema como este.
As
ondas pareciam montanhas, de uma lividez esverdongada, que nos queriam tragar.
Não se podia, por mais cordas que estendessem para os marinheiros se agarrarem,
caminhar de um lado ao outro. Qualquer objecto mal amarrado ou acondicionado
andava deslizando e marrando com o que encontrava. Sairmos da nau era coisa
impossível. As duas naus francesas que no porto estavam e se dirigiam para
Trípoli, na Síria, com a grande tempestade que fazia quase as não víamos nem
elas a nós, pois as vagas desencontradamente ora nos alevantavam às nuvens ora
nos desciam aos abismos arenosos. Andavam fora de si não só os passageiros, com
doloridos gritos e lamentações, mas também marinheiros e oficiais, homens tão
experimentados no mar. O que me dava mais pena era ver meu companheiro jazer em
contínuos desmaios e quando tornava a si, abraçar-se a mim e pedir-me a
confissão. Foi terrível a noite. Atribulados e cansados, ao romper do dia, com
o vento soprando cada hora com mais ruidosa fúria, vimos surgir do esverdinhado
do mar e das nuvens que nele assentavam o vulto negro e enorme de uma nau
veneziana. Aproximava-se com incrível rapidez aquela negra sombra e com ela os
lancinantes gritos que ao passar deixou em farrapos pelo ar, num turbilhão que
parecia um inferno. Mostrava-se o mar cada vez mais enfurecido e o chuveiro era
intenso. Sobrelevava o nosso próprio perigo o espanto e admiração de ver coisa
tão horrenda: aquela massa enorme afastar-se a correr para ir esfrangalhar-se
num estrídulo e pavoroso fragor, que estrondeou acima dos uivos do vento e do
rebentar das ondas, na penedia junto de terra. Sem sabermos que cuidar nem que
dizer, ficámos por momentos especados, a respiração suspensa, boquiabertos,
atónitos, o coração a bater fortemente, e o nosso assombro aumentou ao vermos o
mar começar a aquietar, o vento a calar, o chuveiro a cessar e o céu a aclarar.
Eram quase dez horas do dia.
Presenciaram o desastre os vilões
da montanha, que sempre do alto, dia e noite, têm suas vigias por causa dos
corsários. Gente bárbara e cruel, logo acudiram à pressa, trazendo consigo suas
bestas, e começaram desumanamente, sem nenhum temor de Deus, a roubar e
carregar quanto o mar lançava fora. Querendo-lhes ir à mão os pobres homens que
do naufrágio e da fúria das ondas escapavam, nus, miseráveis, meios mortos, com
suas armas os ofendia como contra inimigo mortal aquela maldita canalha.
Carregavam suas alimárías, no meio da mais feroz violência, e tornavam-se para
suas casas sem haver quem lhes pudesse resistir por serem muitos. Todo aquele
dia, a noite seguinte e parte do outro dia exerceu aquela gente tão impiedoso
latrocínio, até que acudiu a justiça de Limison, cidade maior e mais importante
que Pafo, que a muito custo correu com os ladrões. Também de Pafo acorria muita
gente e os das naus, estando já o mar de todo sossegado, saíram em terra. Meu
companheiro e eu começámos a caminhar para onde estava a nau perdida, que seria
cerca de meia légua, e ao chegarmos apertou-se-nos o coração com o espectáculo
lastimoso de tanto destroço, tanta gente morta e ferida espalhada pelo areal,
que, de compaixão, não pudemos conter as lágrimas». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,