A Floresta do Avesso. A magia segreda-me ao ouvido
«Quando tinha três dias de idade,
a magia veio ter comigo na ponta dos pés, tomou-me nas suas mãos grandes e calosas
e murmurou-me ao ouvido orações orvalhadas com odor a coentros. Eram sussurros em
castelhano na sua maioria, mas condimentados com frases de som gutural numa
língua que, quando tinha cinco anos, me foi revelada como sendo a falada por Jesus
e os seus apóstolos.
Quando fecho os olhos, agora, vinte
e um anos mais tarde, a intimidade daquelas palavras provoca-me arrepios. E
apercebo-me de que uma parte de mim continua a ouvir as vozes quentes e amortecidas
da minha infância, mesmo quando só há silêncio à minha volta.
A feiticeira que me pegava com as
suas grandes mãos parecia-me um ser poderoso e gigantesco. Mas na realidade era
uma curandeira de cinquenta e um anos, de vulto frágil e ossudo, muito coxa e com
espessas cicatrizes roxas nos pés, tão horríveis de se ver que me faziam chorar
quando olhava para elas. Com doze anos, eu já era mais alto do que ela.
A avó Flor.
Tínhamos acabado de regressar do meu
baptismo na igreja da aldeia, e ela pôs-se a mascar folhas de coentros, num esforço
para manter a compostura. Ao longo de toda a cerimónia permanecera de pé junto à
porta da entrada, passando os dedos pela gola de pele do casaco de inverno, desejando
não sentir o coração tão apertado pelo medo.
Penso muitas vezes que ela nunca se
sentia confortável na companhia de outros adultos, e que nós, as crianças do mundo,
éramos o seu refúgio.
Adonai era um nome dado a Deus no
Antigo Testamento e uma das poucas palavras que a minha avó sabia na língua da Bíblia.
Nas orações que me segredou ao ouvido naquele dia, arrastou lentamente as suas três
sílabas. Para manter aquela figura doce e fugidia do Senhor na minha boca por mais
uns momentos, dizia-me, sempre que voltava a contar-me aquela história.
Depois de a avó Flor ter invocado
Adonai para abençoar a cerimónia que estava prestes a iniciar, encostou os lábios
à minha barriga e soprou ruidosamente, para me fazer rir; a seguir, baixou-se e
depositou-me no nosso velho tapete de pele de ovelha, e a luz alaranjada da lareira
envolveu-me no seu calor reconfortante». In Richard Zimler, A Aldeia das Almas
Desaparecidas, A Floresta do Avesso, Porto Editora, 2022, ISBN
978-972-003-580-6.
Cortesia PortoEditora/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Literatura, Cultura, Século XVII,