Que o Medo os Retraia do delito (1492-1594)
«Lá em baixo, cabia aos eclesiásticos de maior hierarquia
ocupar os assentos principais do tablado armado na praça. Reservava-se ao
inquisidor-geral uma espécie de trono acolchoado
e de madeira torneada, instalado em local altivo, decorado por alcatifas e
dosséis de cetins, damascos e veludos, nas cores vermelha e dourada. Os
penitentes eram acomodados à frente deles, em área do estrado mais despojada,
adornado por simples tecido negro. Ficavam dispostos conforme a gravidade das
respectivas acusações: os sujeitos a penas tidas como mais brandas, penitências
espirituais, prisões, desterros, galés, exílios ou açoites, ocupavam as filas
inferiores da arquibancada; os destinados a penas de maior severidade, o que em
suma significava a morte pela fogueira, as superiores.
Os sambenitos dos que deviam escapar ao
fogo vinham assinalados com a cruz de santo André, em diagonal, na forma de x, de cor vermelha. As vestes dos condenados à pena
máxima apresentavam imagens de labaredas desenhadas e coloridas à mão. Se as
chamas se mostrassem voltadas para baixo, entendia-se que uma providencial
confissão de ter praticado o judaísmo em segredo, depois da condenação,
resultara na clemência por parte dos inquisidores. Se as flamas estivessem
direcionadas para cima, rodeadas por figuras de cães, serpentes, grifos, demónios
e de uma estampa representando o rosto do próprio penitente, o destino
inexorável seria a fogueira, purgatorius ignis, a entrega do herege ao fogo
purificador. Nesse caso, para maior vexame, o sambenito era complementado pela
carocha, chapéu alto e pontudo, feito de papel, ilustrado com motivos idênticos
aos das vestes.
Tais sortes, contudo, podiam ser alteradas
ao longo da cerimónia, a depender das atitudes e do comportamento do penitente.
Um súbito pedido de confissão íntima aos inquisidores, mesmo à última hora,
poderia provocar a interrupção momentânea do auto e a revisão da sentença
prévia. Quando menos, uma declaração de arrependimento considerada sincera
resultaria na caridade de se mandar estrangular o réu por meio do garrote antes
de atirá-lo ao fogo. Estabelecia-se assim um círculo de incertezas que
provocava suspense e mantinha inflamado o interesse da plateia.
Rezado o introito da Santa Missa, coube
naquela manhã ao padre Francisco Ferreira, sacerdote da Companhia de Jesus,
pregar o sermão aos presentes, em nome da redenção dos pecados humanos. As prédicas dos autos de
fé em Portugal tinham como mote a censura à lei mosaica, a Lei de Moisés, o
judaísmo, a exortação à Paixão de Cristo, a alusão ao Juízo Final e a
referência aos castigos eternos prognosticados para os que se desvirtuassem dos
mandamentos da Igreja, abraçando falsas doutrinas.
Seguia-se ao sermão a leitura do édito de
fé, no qual todos os moradores locais eram advertidos a confessar as próprias
culpas e a dar notícia, nos dias subsequentes, de quaisquer outras pessoas
conhecidas incursas em delitos passíveis de investigação por parte dos
inquisidores. Chegava-se, enfim, ao momento pelo qual a multidão mais ansiava:
a leitura das sentenças dos acusados, feita por clérigos de voz altissonante,
previamente escolhidos para a função. Um a um, ao ouvirem os respectivos nomes,
os prisioneiros deviam levantar-se de seu lugar e caminhar para o centro do
cadafalso, à vista de todos, a fim de ouvirem a súmula de seu processo e o
consequente veredicto. Como eram muitos os réus, a cerimónia podia prolongar-se
por horas e, às vezes, mesmo alguns dias. Mas a atenção da plateia jamais
arrefecia.
O público acompanhava, com sádico
regozijo, as reacções dos penitentes. Alguns deles choravam, baixavam a cabeça,
tentavam esconder o rosto com as mãos. Outros, impetuosos, gritavam impropérios
e atiravam pragas aos juízes, sendo de pronto amordaçados pelos guardas. Havia
ainda os que se ajoelhavam, em desespero, implorando por misericórdia. Mas
também os que permaneciam impassíveis diante da hora final, o que podia ser
interpretado como gesto de derradeira arrogância.
Quando Gaspar Rodrigues foi chamado ao
meio do tablado, o clérigo encarregado de ler a súmula de seu processo passou
em revista todas as circunstâncias que o haviam levado a ser arrancado de casa,
diante dos filhos pequenos, havia três anos e quatro meses, pelo meirinho e
pelos guardas do Santo Ofício. A acusação: praticar o judaísmo em segredo,
mesmo sendo baptizado na fé de Cristo. Era tido e havido na conta de herege.
Vivia como católico em público, mas prestaria culto, na intimidade do lar, à
Lei de Moisés. Tinha sido denunciado, portanto, como criptojudeu». In
Lira Neto, Arrancados da Terra, Penguin Random, chancela Objectiva, 2021, ISBN
978-989-784-257-3.
Cortesia de PenguinRandom/Objectiva/JDACT
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