sábado, 13 de janeiro de 2024

Arrancados da Terra. Lira Neto. «Os sambenitos dos que deviam escapar ao fogo vinham assinalados com a cruz de santo André, em diagonal, na forma de x, de cor vermelha. As vestes dos condenados à pena máxima apresentavam imagens de labaredas desenhadas e coloridas à mão»

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Que o Medo os Retraia do delito (1492-1594)

«Lá em baixo, cabia aos eclesiásticos de maior hierarquia ocupar os assentos principais do tablado armado na praça. Reservava-se ao inquisidor-geral uma espécie de trono acolchoado e de madeira torneada, instalado em local altivo, decorado por alcatifas e dosséis de cetins, damascos e veludos, nas cores vermelha e dourada. Os penitentes eram acomodados à frente deles, em área do estrado mais despojada, adornado por simples tecido negro. Ficavam dispostos conforme a gravidade das respectivas acusações: os sujeitos a penas tidas como mais brandas, penitências espirituais, prisões, desterros, galés, exílios ou açoites, ocupavam as filas inferiores da arquibancada; os destinados a penas de maior severidade, o que em suma significava a morte pela fogueira, as superiores.

Os sambenitos dos que deviam escapar ao fogo vinham assinalados com a cruz de santo André, em diagonal, na forma de x, de cor vermelha. As vestes dos condenados à pena máxima apresentavam imagens de labaredas desenhadas e coloridas à mão. Se as chamas se mostrassem voltadas para baixo, entendia-se que uma providencial confissão de ter praticado o judaísmo em segredo, depois da condenação, resultara na clemência por parte dos inquisidores. Se as flamas estivessem direcionadas para cima, rodeadas por figuras de cães, serpentes, grifos, demónios e de uma estampa representando o rosto do próprio penitente, o destino inexorável seria a fogueira, purgatorius ignis, a entrega do herege ao fogo purificador. Nesse caso, para maior vexame, o sambenito era complementado pela carocha, chapéu alto e pontudo, feito de papel, ilustrado com motivos idênticos aos das vestes.

Tais sortes, contudo, podiam ser alteradas ao longo da cerimónia, a depender das atitudes e do comportamento do penitente. Um súbito pedido de confissão íntima aos inquisidores, mesmo à última hora, poderia provocar a interrupção momentânea do auto e a revisão da sentença prévia. Quando menos, uma declaração de arrependimento considerada sincera resultaria na caridade de se mandar estrangular o réu por meio do garrote antes de atirá-lo ao fogo. Estabelecia-se assim um círculo de incertezas que provocava suspense e mantinha inflamado o interesse da plateia.

Rezado o introito da Santa Missa, coube naquela manhã ao padre Francisco Ferreira, sacerdote da Companhia de Jesus, pregar o sermão aos presentes, em nome da redenção dos pecados humanos. As prédicas dos autos de fé em Portugal tinham como mote a censura à lei mosaica, a Lei de Moisés, o judaísmo, a exortação à Paixão de Cristo, a alusão ao Juízo Final e a referência aos castigos eternos prognosticados para os que se desvirtuassem dos mandamentos da Igreja, abraçando falsas doutrinas.

Seguia-se ao sermão a leitura do édito de fé, no qual todos os moradores locais eram advertidos a confessar as próprias culpas e a dar notícia, nos dias subsequentes, de quaisquer outras pessoas conhecidas incursas em delitos passíveis de investigação por parte dos inquisidores. Chegava-se, enfim, ao momento pelo qual a multidão mais ansiava: a leitura das sentenças dos acusados, feita por clérigos de voz altissonante, previamente escolhidos para a função. Um a um, ao ouvirem os respectivos nomes, os prisioneiros deviam levantar-se de seu lugar e caminhar para o centro do cadafalso, à vista de todos, a fim de ouvirem a súmula de seu processo e o consequente veredicto. Como eram muitos os réus, a cerimónia podia prolongar-se por horas e, às vezes, mesmo alguns dias. Mas a atenção da plateia jamais arrefecia.

O público acompanhava, com sádico regozijo, as reacções dos penitentes. Alguns deles choravam, baixavam a cabeça, tentavam esconder o rosto com as mãos. Outros, impetuosos, gritavam impropérios e atiravam pragas aos juízes, sendo de pronto amordaçados pelos guardas. Havia ainda os que se ajoelhavam, em desespero, implorando por misericórdia. Mas também os que permaneciam impassíveis diante da hora final, o que podia ser interpretado como gesto de derradeira arrogância.

Quando Gaspar Rodrigues foi chamado ao meio do tablado, o clérigo encarregado de ler a súmula de seu processo passou em revista todas as circunstâncias que o haviam levado a ser arrancado de casa, diante dos filhos pequenos, havia três anos e quatro meses, pelo meirinho e pelos guardas do Santo Ofício. A acusação: praticar o judaísmo em segredo, mesmo sendo baptizado na fé de Cristo. Era tido e havido na conta de herege. Vivia como católico em público, mas prestaria culto, na intimidade do lar, à Lei de Moisés. Tinha sido denunciado, portanto, como criptojudeu». In Lira Neto, Arrancados da Terra, Penguin Random, chancela Objectiva, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.

 

Cortesia de PenguinRandom/Objectiva/JDACT

 

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