quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Sabes onde hai água? O rapaz respondeu: Há uma fonte numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma careta assustadora, o salafrário ameaçou-o novamente: Se my mientes, te arranco el corazón com los dientes...»

jdact

«Dos vários personagens que conheci naqueles estranhos dias, o rapaz foi curiosamente o primeiro que vi. Cruzámos os nossos destinos logo na primeira manhã, e quando falei com ele já sabia o que tinha feito, a coragem que revelara. Hoje, tenho pena de não o ter elogiado. Talvez as coisas tivessem sido diferentes, talvez tivesse olhado para mim com outros olhos. Mas não foi assim e não há nada que possa fazer para mudar a história. O rapaz estava ainda próximo da arruinada Igreja de São Vicente de Fora quando se deu o terceiro abalo. Embora determinado a procurar a irmã, não lhe fora fácil atravessar aquele descalabro. Não existiam ruas, nem casas, nem prédios onde antes tinham existido. Quando a nuvem de poeira levantou, viu no meio daquela irrespirável bruma o Castelo de São Jorge e mais em baixo a Sé, e foi assim que se orientou em direcção a sua casa, próxima da Igreja da Madalena.

Naquelas circunstâncias, andar era difícil: havia fendas inesperadas e fundos precipícios no terreno; as ruas apresentavam-se impedidas, atulhadas de pedras. Demorou a aproximar-se do Castelo e das suas muralhas. Os mortos atapetavam o chão, em posições complexas, semelhantes a estátuas esculpidas por desvairados. As pessoas corriam, atarantadas, como as crianças perdidas, aos berros.

O rapaz prosseguiu, determinado. Próximo da Graça, uma pequena multidão observava o Rossio, em baixo, e a colina oposta, do Bairro Alto. Nada era como tinha sido. A cidade abatera, como que deitando-se no chão, e nem os seus edifícios mais simbólicos haviam escapado. Na praça, o Hospital de Todos-os-Santos era o único que parecia intacto, mas ao seu lado tanto o Convento de São Domingos, como o Palácio da Inquisição, haviam sido fortemente atingidos.

Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo, mas não encontrou razão. Por isso, cessou de procurar motivos e continuou a descer para a Sé, e com ele desciam muitas pessoas que tinham subido para as festas em São Vicente de Fora e agora regressavam às suas casas. Eram já pessoas diferentes, mudadas para sempre, partidas por dentro, cheias de mágoa e desespero e medo do futuro. Tinham ido encontrar-se com Deus naquele feriado e haviam sido massacradas de uma forma inimaginável.

Ao passar perto da Sé ouviu tiros. Deviam ter fugido prisioneiros do Limoeiro e os soldados tentavam abatê-los, foi a sua conclusão, e decidiu ter precaução, receando ser apanhado no fogo cruzado dos confrontos. Algumas casas tinham ficado intactas, bem como a Sé, que, orgulhosa, apenas mostrava os flancos danificados.

Foi então que, mesmo à sua frente, viu três homens a saírem de uma casa. Arrastavam um desgraçado, provavelmente o proprietário. Atiraram-no ao chão e deram-lhe um tiro, abatendo-o. O rapaz escondeu-se atrás de um monte de pedras e ficou a observar. Um dos homens, mais alto do que os outros dois, parecia ser o chefe. O seu cabelo e as suas barbas eram negros e dos seus olhos e dos seus gestos emanava uma energia maligna. Vasculhou os bolsos do proprietário e retirou um relógio. Depois, os três bandidos reentraram dentro da casa e ouviram-se mais gritos, seguidos de um silêncio mais assustador do que o barulho.

O rapaz aproveitou o momento e recomeçou a andar, mas foi surpreendido pelo regresso abrupto do homem mais alto, que se dirigiu ao morto. O rapaz sentiu medo. O grandalhão observou-o, enquanto vasculhava as roupas do defunto. Sorriu quando encontrou uma chave e depois perguntou ao rapaz: Qué passa? O rapaz não respondeu, mas percebeu que o ladrão era espanhol. Um dos seus companheiros saiu também de casa, trazendo uma mulher pelos cabelos, que implorava: Não, não, por favor, não! O  homem enorme olhou para o rapaz e riu-se, e depois perguntou: Hay visto una mujer morrer? O rapaz respondeu: Sim. A minha mãe. O energúmeno soltou uma gargalhada e perguntou-lhe: Como hay morrido tu pobre madre? O rapaz contou-lhe: Morreu lá em cima, em São Vicente de Fora, na igreja. Executando uma mímica maldosa, o bisonte benzeu-se e murmurou: Paz à su alma... Pero, esta vai gozar mucho más que tu madre... Aproximou-se da mulher, agarrou-a pela nuca e depois ordenou ao seu subordinado: Leva-la!!!

O outro riu e acatou a ordem, mas antes aconselhou-o, apontando na direcção do rapaz: Matá-lo. Muertos no hablam con soldados... O homem mais alto deu nova gargalhada, aproximou-se do rapaz e perguntou: Chico, quieres morrer? O rapaz disse que não. O matodonte agarrou-o pelo cachaço, levou a mão ao cinto e empunhou uma faca, que depois lhe encostou à garganta. A mi me gustan los chicos... Apesar do medo, o rapaz disse: Eu só queria água... O cafageste, ao ouvir falar em água, pensou uns segundos.

Sabes onde hai água? O rapaz respondeu: Há uma fonte numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma careta assustadora, o salafrário ameaçou-o novamente: Se my mientes, te arranco el corazón com los dientes... Não, gemeu o rapaz, é verdade, há água ali. O Cão Negro libertou-o e ordenou: Vien. Entraram os dois dentro de casa. No meio da sala, em cima de um sofá, a mulher estava deitada de costas, com as saias levantadas, e um dos outros espanhóis, já com as calças a meio dos joelhos, preparava-se para penetrá-la.

Ei cabrón, gritou o Cão Negro. O companheiro voltou-se para trás, aflito, e riu nervosamente. Ei, Cã Niegro, también tenemos derecho... O chefe ergueu-lhe o punho à frente dos olhos e perguntou: Quien manda? Tu. Entonces, sou yo lo primero. O Cão Negro baixou as calças enquanto o outro se afastava um pouco. O rapaz assistiu aos seus actos. A mulher chorava; e depois do chefe veio o homem que ele afastara, e depois o terceiro homem praticou o mesmo acto, sempre com ela a chorar. O rapaz não podia fazer nada e quando aquilo acabou estava com medo que o quisessem a ele, mas nenhum dos três o quis. O Cão Negro proclamou que ela ainda aguentava outra rodada geral, e todos se riram muito e só depois se lembraram do rapaz, e o Cão Negro mandou-o procurar um jarro, ou uma panela grande, para ir buscar água à fonte, acompanhado por um dos espanhóis». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

 

Cortesia de CdasLetras/JDACT

 JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755, Conhecimento,