De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado
Tentações do Demónio
«(…) E Carrazedo de Montenegro,
valeu a pena? Tem duas estátuas de granito, quatrocentistas, preciosos exemplos
do poder expressivo de um material pouco dúctil, mas que o viajante muito
estima. Tem por cima duma porta lateral um S. Gonçalo de Amarante rude, tosco,
de grande cajado, uma espécie de arrasa-montanhas ou mata-gigantes, colocado, o
santo, sobre uma ponte de três arcos de vazamento apenas apontado. Terá Carrazedo
de Montenegro muito mais, em gente, pedra e paisagem. Mas em Carrazedo de
Montenegro foi o viajante pela primeira vez tentado pelo demónio, e desta sua
vitória se alimentou em futuras tentações outras, que tornou a vencer. Nunca se
sabe o que espera o viajante que se mete ao caminho, mas o aviso cá fica.
A estrada passa ali mesmo, rente
à igreja, que é desmedidamente alta, uma enorme construção, tendo em vista não
ser a freguesia nenhuma babilónia. Arrumado o automóvel, o viajante foi dando a
volta ao templo, de nariz no ar, mirando as cantarias, à busca duma porta que
lhe desse entrada. Enfim, quando já cuidava desistir ou procurar guia
competente, deu com uma escada exterior e lá no alto uma porta meio cerrada.
Seria o acesso para a torre sineira. Não chegou o viajante a confirmar a
hipótese, ou não guarda lembrança, mas, tendo subido as escadas e empurrado discretamente
a porta, deu três passos e achou-se no coro alto, excelente ponto de vista para
abarcar toda a nave. O viajante debruçou-se do balaústre, demorou seu tempo, é
um viajante que, podendo, vê devagar, e quando enfim se retirava, sem que
vivalma na igreja estivesse de oração ou vigia, dá com uma imagem ali a um
canto, uma Nossa Senhora com anjos aos pés, mesmo à mão de apanhar.
Aproximou-se para apreciar melhor, e neste instante, vindo certamente do campanário,
aparece-lhe o demónio, tão à vontade que nem trazia disfarce: era chavelhudo,
rabudo, cabeludo e barbichudo, como mandam as regras. Diz o tentador: Então,
andas a viajar? O viajante trata muita gente por tu, mas não o inimigo.
Respondeu secamente: Ando. Deseja alguma coisa? Torna o fulaninho: Vinha
dizer-te que esses anjos estão seguros só por um espigão. Basta puxar e
ficam-te nas mãos. A Virgem, não te aconselho. É pesada, grande, e viam-te à saída.
O
viajante zangou-se. Filou o diabo por um cor… e disse-lhe das boas: Ou você
desaparece já da minha vista, ou leva um pontapé que só pára em casa. Isto é,
no inferno. O diabo tem aquele aparato todo, porém, no fundo, é um cobarde.
Tinha o viajante mais para dizer, mas ficou com a palavra no ar: diabo, viste-o
tu. Chocadíssimo com o atrevimento do mafarrico, o viajante encaminhou-se para
a saída. Abriu a porta, desceu os primeiros degraus, olhou a povoação ali do
alto. Não havia ninguém à vista, nem passavam carros na estrada. Então o
viajante voltou atrás, tornou a entrar no coro, chegou-se à imagem que
piedosamente o fitava, e fez o que o diabo lhe ensinara: agarrou num anjo,
puxou-o, e ficou com ele na mão. Durante três segundos, céu e terra pararam
para ver o que ia acontecer: perdia-se aquela alma, ou salvava-se? O viajante
tornou a colocar o anjo no seu lugar, e desceu a escada, enquanto ia
resmungando que não são maneiras próprias de a igreja empalar assim os tenros
anjinhos como se fossem uns ganimedes quaisquer. Riu-se a terra, corou o céu
envergonhado, e o viajante continuou viagem para Murça». ». In José Saramago, Viagem a
Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN
978-972-003-473-1.
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,