terça-feira, 11 de outubro de 2016

Samarcanda. Amir Maalouf. «Se queres preservar os teus olhos, os teus ouvidos e a tua língua, esquece que tens olhos, ouvidos e língua»

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Poetas e amantes
«(…) Khayyam sente-se lisonjeado por a sua façanha, autêntica, ser conhecida na Transoxiana, mas as suas preocupações mantêm-se. A referência a Avicena na boca de um cádi de rito chafeíta nada tem de tranquilizador; e ele ainda não foi convidado a sentar-se. Abu Taher prossegue: não são só as tuas proezas que se transmitem de boca em boca; também te atribuem quadras muito curiosas. A afirmação é comedida, ele não acusa, tão-pouco iliba, apenas interroga indirectamente. Omar considera chegada a altura de romper o silêncio: o robai que o homem da cicatriz repete não é meu. Fazendo um gesto impaciente com a mão, o juiz recusa o protesto. Pela primeira vez, o tom é severo: pouco importa que tenhas composto este ou aquele verso. Referiram-me palavras de uma tal impiedade, que, só de as citar, me sentiria tão culpado como quem as proferiu. Não procuro fazer-te confessar, não procuro infligir-te um castigo. Essas acusações de alquimia entraram-me por um ouvido e saíram-me pelo outro. Estamos sozinhos, somos dois homens instruídos, e quero apenas saber a verdade. Omar não fica nada sossegado, receia uma armadilha, hesita em responder. Já se vê entregue ao carrasco para ser estropiado, castrado ou crucificado. Abu Taher levanta a voz, quase grita: Omar, filho de Ibraim, fabricante de tendas de Nichapur, sabes reconhecer um amigo?
Há nesta frase um toque de sinceridade que fustiga Khayyam. Reconhecer um amigo? Considera a pergunta com gravidade, contempla o rosto do cádi, examina os seus rictos, os estremecimentos da sua barba. Lentamente, deixa-se invadir pela confiança. As suas feições suavizam-se, descontraem-se. Liberta-se dos guardas, que, a um gesto do cádi, deixam de o entravar. Depois, vai sentar-se, sem a tal ser convidado. O juiz sorri com bonomia, mas retoma imediatamente o seu interrogatório: és o infiel que alguns descrevem? Mais do que uma pergunta, este é um grito de aflição, que Khayyam não desilude: desconfio do zelo dos devotos, mas nunca disse que o Uno era dois. Alguma vez o pensaste? Nunca, Deus é testemunha. Para mim, isso basta. Para o Criador também, julgo eu. Mas, para a multidão, não. Espreitam as tuas palavras, os teus mínimos gestos, tal como os meus, tal como os dos príncipes. Alguém te ouviu dizer: vou por vezes às mesquitas, onde a sombra é propícia ao sono... Só um homem em paz com o seu Criador poderia pegar no sono num lugar de culto. Apesar do trejeito dubitativo de Abu Taher, Omar exalta-se e vai mais longe: não sou um daqueles cuja fé é apenas terror do Juízo, cuja oração não passa de prosternação. O meu modo de orar? Contemplo uma rosa, conto as estrelas, maravilho-me com a beleza da criação, com a perfeição do seu ordenamento, com o homem, a mais bela obra do Criador, com o seu cérebro sedento de conhecimento, com o seu coração sedento de amor, com os seus sentidos, todos os seus sentidos, despertos ou satisfeitos.
De olhos pensativos, o cádi levanta-se, vem sentar-se ao lado de Khayyam, pousa-lhe no ombro uma mão paternal. Os guardas trocam olhares pasmados. Escuta, meu jovem amigo, o Altíssimo deu-te o que de mais precioso pode obter um filho de Adão, a inteligência, o dom da palavra, a saúde, a beleza, o desejo de saber, de desfrutar da existência, a admiração dos homens e, suponho eu, os suspiros das mulheres. Espero que Ele não te tenha privado da sensatez, a sensatez do silêncio, sem a qual nada de tudo isto pode ser apreciado nem mantido. Terei de esperar até ser velho para exprimir o que penso? No dia em que poderás exprimir tudo o que pensas, os descendentes dos teus descendentes terão tido tempo de envelhecer. Estamos na era do segredo e do medo, tens de possuir dois rostos, mostrar um à multidão, e o outro a ti mesmo e ao teu Criador. Se queres preservar os teus olhos, os teus ouvidos e a tua língua, esquece que tens olhos, ouvidos e língua». In Amir Masalouf, Samarcanda, 1988, tradução de Paula Caetano, Editorial Presença, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-102-5.

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