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Tanto mais que ela nem sempre estava em estado de crise. Parecia mesmo dar, de vez
em quando, sinais de lucidez. Oh, não de verdadeira lucidez! Conheci-a no fim da
sua vida, e observei-a. Nunca esteve lúcida ao ponto de se aperceber do seu
estado. E tanto melhor assim, pois teria sofrido demasiado. Mas atravessava longas
horas de tranquilidade em que não gritava, não gemia, em que podia mostrar-se de
uma grande ternura para com aqueles que a rodeavam. Por vezes, punha-se a cantar,
numa voz vacilante e no entanto melodiosa. Ainda tenho no ouvido uma canção turca
que falava das raparigas de Istambul passeando nas praias de Oskuder. E outra, de
palavras obscuras, onde se falava de Trebizonde e da morte. Quando a minha avó
cantava, toda a casa se punha em silêncio para ouvi-la. Ela conseguia ser tão enternecedora.
Com um rosto sereno, e um andar gracioso, até aos seus últimos dias. Imagino facilmente
que o marido tivesse desejo de abraçá-la. E que ela se encolhesse de encontro a
ele com um risinho de menina bem comportada. Depois, para se justificar aos
seus próprios olhos, o doutor teria elaborado as teorias adequadas. Com toda a boa-fé...
As quais
teorias se mostraram inoperantes, poder-se-ia objectar, visto que na velhice a minha
avó continuava sem se curar! As coisas não são assim tão simples. Ela não se curou,
é certo, o choque salutar não se produziu. Mas soube ser para o filho uma mãe extremosa.
E quando mais tarde viveu connosco na mesma casa, nunca sentimos a sua presença
como um peso. As suas crises eram espaçadas, e sem consequências duráveis. Se é
certo que a maternidade a não tinha curado, também não tinha certamente agravado
o seu caso, e parece-me que lhe tinha feito bem. Mas poucas pessoas estavam
dispostas a ver as coisas sob esta luz. O velho médico foi criticado... Que digo
eu, criticado, ele foi arrastado na lama! Uma verdadeira fúria. De murmurações,
imprecações, insultos, calúnias. É claro, ele era casado, o mais legalmente possível,
e ninguém podia censurar aquele homem por ter concebido um filho com a sua
esposa legítima. Mas não podiam deixar de pensar que, dadas as circunstâncias, existia
uma espécie de contrato moral, e que ao engravidar aquela mulher que já não era
senhora da sua razão, o doutor Ketabdar tinha de certo modo abusado dela, agira
de uma maneira irresponsável e indigna, contrária a toda a ética médica, guiado
apenas pelos seus baixos apetites...
E quando,
para se defender, ele tentara expor as suas curiosas teorias, desconsiderou-se um
pouco mais. Pois quê?, diziam os seus detractores, usar a esposa como um rato de
laboratório? Mortificado pela hostilidade que o assaltava de todos os lados no entardecer
de uma vida exemplar, o velho médico deixara-se invadir pelo sentimento de
haver faltado ao seu dever, de haver traído a sua missão, e ter caído na indignidade.
Nenhum dos seus colegas, nenhum membro da augusta família, nenhum notável de Adana
queria já cruzar a porta da sua casa. O meu pai dizia-me: tratavam-nos como
pestíferos! E ria muito alto!» In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel
82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.
Cortesia de Difel/JDACT