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«(…)
À noite recebi o primeiro telefonema. A minha mãe disse-me em voz tranquila que
não podia contar-me nada: impedia-lho um homem que estava com ela. Depois
começou a rir e desligou. A princípio prevaleceu o estupor. Pensei que quisesse
brincar e resignei-me a esperar um segundo telefonema. De facto, deixei passar as
horas em conjecturas, inutilmente sentada junto do telefone. Só depois da meia-noite
me dirigi a um amigo polícia, que foi muito simpático: disse que não me
preocupasse, ele tratava de tudo. Mas passou a noite sem que houvesse notícias da
minha mãe. De certo havia apenas a sua partida: a viúva De Riso, uma senhora só,
da mesma idade que ela, com quem há quinze anos alternava períodos de boa
vizinhança com períodos de desavença, dissera-me ao telefone que a tinha acompanhado
à estação. Enquanto estava na fila para adquirir o bilhete, a viúva comprara-lhe
uma garrafa de água mineral e uma revista. O comboio estava cheio, mas a minha mãe
mesmo assim tinha encontrado lugar perco da janela, num compartimento apinhado de
militares de licença. Tinham-se despedido, recomendando-se mutuamente cuidado.
Como estava vestida? Da forma habitual, com roupa que tinha há anos:
saia-casaco azul, uma carteira de cabedal preto, sapatos velhos com meio salto,
uma maleta coçada.
Às
sete da manhã a minha mãe telefonou de novo. Apesar de eu a bombardear com perguntas
(Onde estás? De onde estás a telefonar? Com quem estás?), limitou-se a desbobinar
em voz muito alta, dizendo-as pausadamente com prazer, uma série de expressões
obscenas em dialecto. Depois desligou. Aquelas obscenidades provocaram-me uma
estranha regressão. Voltei a telefonar ao meu amigo, espantando-o com uma
confusa mistura de italiano e de expressões em dialecto. Quis saber se a minha mãe
estava particularmente deprimida nos últimos tempos. Ignorava. Admiti que já não
era como dantes, tranquila, pacatamente divertida. Ria sem motivo, falava de
mais; mas as pessoas de idade fazem muitas vezes isso. O meu amigo também concordou:
acontecia muitas vezes os velhos, com os primeiros calores, fazerem coisas estranhas;
não era motivo para preocupação. Eu, pelo contrário, continuei a preocupar-me e
corri a cidade de cima a baixo, procurando sobretudo nos lugares onde sabia que
gostava de passear.
O terceiro
telefonema chegou às dez da noite. A minha mãe falou confusamente de um homem
que a seguia para a levar embrulhada num tapete. Pediu-me que corresse a ajudá-la.
Supliquei-lhe que me dissesse onde estava. Mudou de tom, respondeu que era melhor
não. Fecha-te dentro de casa, não abras a porta a ninguém, recomendou. Aquele
homem também me queria fazer mal a mim. Depois acrescentou: vai dormir. Agora vou
tomar banho. Não se ouviu mais nada. No dia seguinte, duas raparigas viram o seu
corpo a boiar a poucos metros da margem. Tinha vestido apenas o soutien.
A mala não foi encontrada. Não se encontrou o saia-casaco azul. Não encontraram
sequer as cuecas, as meias, os sapatos, a carteira com os documentos. Mas tinha
no dedo o anel de noivado e a aliança. Usava nas orelhas os brincos que o meu pai
lhe tinha oferecido meio século antes. Vi o corpo e perante aquele objecto lívido
senti que tinha de me agarrar a ele para não ir parar sei lá onde. Não tinha sido
violado. Apresentava apenas algumas equimoses provocadas pelas ondas, aliás
leves, que o tinham atirado durante toda a noite de encontro a certos escolhos à
beira de água. Pareceu-me que tinha em volta dos olhos restos de uma maquilhagem
que devia ter sido muito carregada». In Elena Ferrante, Um Estranho Amor, 1995,
Publicações dom Quixote, Lisboa, 2005, ISBN 972-202-879-0.
Cortesia de
PdomQuixote/JDACT