Cortesia
de wikipedia e jdact
«O presente artigo parte da análise dos
compromissos de três capelas instituídas, no século XIV, em duas igrejas da
vila de Coruche, por três donas (todas de nome Maria) que pertenceram à elite
local. Nos seus testamentos avultam dois grandes objectivos: assegurar a
salvação das suas almas e perpetuar as suas memórias».
«As
fontes que serviram de suporte a este trabalho são os títulos de três capelas instituídas,
no século XIV, na vila de Coruche (sentido medieval de capela: instituição de
sufrágios perpétuos por alma do instituidor, que obriga parte do seu património
à igreja onde funda a capela, podendo, em alguns casos, ser acompanhada da
edificação de um altar ou capela onde sejam celebrados os sufrágios). Os
documentos originais que são os testamentos ou compromissos das capelas tiveram
uma vida acidentada. Submetidos a cópias e públicas-formas durante os séculos
XIV e XV, foram, em 1535, transcritos para o Tombo de todalas cappellas
situadas na igreja de S. João, no qual foram introduzidos os autos de medição
dos respectivos bens. Por sua vez, o tombo quinhentista foi tresladado em 1689
para o Tombo das Cappellas da Igreja de São João da Villa de Coruche que
se conserva no Arquivo Distrital de Santarém (os documentos relativos à capela
de Maria Eanes Garavinha foram, em 1621, integrados no Tombo 2.º das Cappelas
da Coroa (TT), onde o testamento é parcialmente transcrito). É sob esta forma
que os conhecemos e, ao tentarmos recuperar esta fonte histórica estamos
conscientes dos riscos que a sua utilização comporta. De facto, as vicissitudes
por eles sofridas deixaram marcas indeléveis nos textos conservados. São
frequentes as adulterações de termos e os erros de cópia que suscitam, como é
óbvio, incontornáveis dúvidas de leitura e de interpretação. Apesar de tudo,
consideramos que o conteúdo essencial dos documentos se manteve e seria
insensato da nossa parte rejeitarmos, por inúteis ou desnecessários, os textos
que tantas gerações teimaram em preservar.
As
igrejas de Coruche
Situada
dentro dos antigos limites da diocese de Évora, Coruche foi, desde a
reconquista cristã, afecta à ordem de Avis. Com efeito, logo em 1176, Afonso
Henriques doa ao mestre Gonçalo Viegas, entre outros bens, o castelo de Coruche.
Em 1181, o mesmo rei reafirma esta doação que não inclui o senhorio da vila.
Este pertencia ao rei que, em 1182, concedeu carta de foral aos seus habitantes.
Em 1248, existiam em Coruche três igrejas paroquiais: S. João, S. Pedro e S.
Miguel, cujos padroados foram doados por Afonso III à ordem de Avis. A primeira
situava-se na Praça, a segunda, no local onde ainda se mantém, enquanto a
localização atribuída à igreja de S. Miguel não nos parece convincente (corresponderia
à actual ermida de Santo António; noticia-se que a igreja de S. Miguel tinha
caído e que, por memória da mesma, se erguera um altar em honra daquele orago
na igreja de S. João; não parece lógico que se tenha reconstruído a velha
igreja de S. Miguel para a dedicar a Sto. António, quando o próprio S. Miguel
tinha de ser hospedado na igreja de S João; pertencendo o castelo à
ordem de Avis e dada a preferência das igrejas desta invocação pelos espaços
acastelados, admitimos, como hipótese, que a igreja de S. Miguel possa ter
existido no castelo). Em 1250, pelo contrato celebrado entre a ordem e o bispo
de Évora acerca dos direitos episcopais sobre as igrejas de Coruche, ficamos a
saber que elas deviam pagar a terça parte dos seus rendimentos em pão, vinho,
azeite, gado e dinheiro das oblações e ainda 24 maravedis de procuração cada
uma. O reconhecimento destes direitos por parte da ordem de Avis nem sempre foi
pacífico, mas em 1280 o próprio comendador de Coruche, João Rodrigues, com o
mestre Simão Soares e o comendador-mor Egas Martins, em nome do convento de
Avis, propõem-se meter o bispo e o cabido de Évora em posse das terças das
igrejas, incluindo as morturas ou legados dos defuntos. Em 1320, as igrejas de
Coruche auferiam ainda módicos rendimentos anuais, cabendo o primeiro lugar à
igreja de S. João, seguida pelas de S. Miguel e de S. Pedro. Foi precisamente
nas duas primeiras igrejas que as capelas em análise foram instituídas. Em 15
de Outubro de 1339, Maria Raimundo fazia testamento e fundava capela em S.
João. Em 3 de Dezembro de 1348, Maria Simões ordenava capela na mesma igreja.
Em 19 de Maio de 1394, Maria Eanes Garavinha realizava o seu testamento, instituindo
capela em S. Miguel.
Identificação
das instituidoras
Tentemos,
com base nos seus testamentos e nos inventários dos seus bens, identificar
estas três donas, por sinal todas chamadas Marias, que, na centúria de Trezentos,
fundaram capelas em duas das igrejas de Coruche. Desde logo, o facto de
instituírem capelas indicia-as como personagens relevantes da elite local (um
mecanismo social de grande importância, destinado a preservar para a eternidade
o prestígio e a fortuna de determinadas famílias). Depois, a circunstância de
serem todas viúvas e abastadas e, ao que parece, sem filhos, faz delas potenciais
benfeitoras das instituições eclesiásticas. De facto, parte considerável do
património eclesiástico provinha de doações femininas, a ponto de alguns
governos de cidades medievais estabelecerem a quantia máxima que as viúvas
ricas podiam doar à Igreja, evitando assim que delapidassem seus bens em
detrimento da família. Em Portugal, as conhecidas leis contra a amortização,
que ultrapassavam, de longe, o âmbito das doações piedosas das viúvas,
reflectem o mesmo conflito de interesses entre famílias nobres e Igreja,
tomando os reis as primeiras sob a sua protecção». In Maria Ângela Beirante, Salvação
e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV, Território do Sagrado, Edições
Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-109-1.
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