Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Desde minhas mais remotas lembranças Janice sempre fora assim: insaciável.
Quando éramos pequenas, tia Rose costumava rir, encantada, e a exclamar: se
essa menina estivesse numa prisão feita de biscoitos, fugiria de lá abrindo
caminho à dentada, como se a voracidade de Janice fosse motivo de orgulho. Mas,
afinal, tia Rose estava no topo da cadeia alimentar e, ao contrário de mim, não
tinha nada a temer. Até onde eu podia me lembrar, Janice sempre havia
conseguido descobrir meus doces, não importava onde eu os escondesse, e as
manhãs de Páscoa em nossa família eram desagradáveis, meio brutas e curtas.
Chegavam inevitavelmente ao clímax quando Umberto a repreendia por ter roubado
o meu número de ovos de Páscoa, e Janice, com os dentes cheios de chocolate,
respondia sibilando, debaixo da cama, que ele não era seu pai e não podia lhe
dizer o que fazer. O frustrante era que o seu físico não a denunciava. Sua pele
recusava-se obstinadamente a revelar seus segredos; era lisa como a cobertura
acetinada de um bolo de noiva, as feições moldadas com a mesma delicadeza das
frutinhas e florezinhas de marzipã criadas pelas mãos de um mestre confeiteiro.
Nem gim nem café nem vergonha nem remorso, nada havia conseguido abrir uma
rachadura naquela fachada vitrificada. Era como se Janice tivesse dentro de si
uma fonte perene de vida, como se levantasse todas as manhãs rejuvenescida no
poço da eternidade, nem um dia mais velha, nem um grama mais gorda e ainda
sedenta do mundo.
Para
minha infelicidade, não éramos gémeas idênticas. Uma vez, no pátio da escola,
entreouvi alguém referir-se a mim como um Bambi de pernas de pau e, embora
Umberto tivesse rido e dito que aquilo era um elogio, não foi o que me pareceu.
Mesmo depois de ultrapassar a idade em que tinha sido mais desajeitada, eu
sabia que, perto de Janice, continuava parecendo magrizela, desengonçada e anémica;
aonde quer que fossemos ou o que quer que fizéssemos, ela era tão morena e
efusiva quanto eu era pálida e reservada. Sempre que entravamos juntas num bar,
todos os reflectores viravam-se imediatamente para ela e, mesmo estando bem a
seu lado, eu era apenas mais uma pessoa no local. Com o tempo, entretanto,
fiquei à vontade no meu papel. Nunca precisava preocupar-me com a conclusão de
minhas falas, porque Janice concluía por mim. E, nas raras ocasiões em que
alguém perguntava sobre minhas esperanças e meus sonhos, em geral, quando eu
tomava xícara de chá com um dos vizinhos de tia Rose, Janice me puxava para o
piano, que tentava tocar enquanto eu virava as páginas da partitura para ela.
Mesmo agora, aos 25 anos, eu ainda me agitava e acabava bloqueando nas
conversas com estranhos, torcendo desesperadamente para ser interrompida antes
de ter que combinar um verbo com um objecto.
Sepultámos
a tia Rose debaixo de uma chuva forte e o cemitério parecia quase tão imundo
quanto eu me sentia por dentro. Parada junto ao seu túmulo, senti as gotas
pesadas de água caírem do meu cabelo e se misturarem com as lágrimas que me
escorriam pelas faces; os lenços de papel que eu levara de casa havia muito
tinham-se transformado numa pasta em meus bolsos. Apesar de ter chorado a noite
inteira, nem de longe eu estava preparada para a triste sensação de fim que
experimentei quando o caixão foi baixado à terra, meio de lado. Um caixão tão
grande para a estrutura longa e esguia de tia Rose!.. De repente me arrependi
de não ter pedido para ver o corpo, mesmo que não fizesse diferença para ela.
Ou será que faria? Talvez ela estivesse nos observando de algum lugar muito
distante, querendo poder nos dizer que havia chegado em segurança. Foi uma
ideia consoladora, uma bem-vinda distracção da realidade, e desejei poder
acreditar nela. Ao fim do enterro, a única pessoa que não parecia um roedor
afogado era Janice, que usava botas de plástico com saltos de 10 centímetros e
um chapéu preto que expressava tudo, menos luto. Em contraste, eu estava usando
o que um dia Umberto havia rotulado de meu traje de freira; se as botas e o decote
de Janice diziam venha,
meus sapatos pesadões e o vestido abotoado até ao pescoço com certeza diziam fora. Algumas pessoas
apareceram junto à sepultura, mas somente o Senhor. Gallagher, o advogado da família,
ficou para conversar. Nem Janice nem eu jamais o tínhamos encontrado, mas tia
Rose falara dele com tanta frequência e tamanho carinho que o homem estava
fadado a ser uma decepção». In Anne Fortier, Julieta, Editorial Planeta,
ISBN 978-989-657-127-6, Sextante, 2010, ISBN 978-859-929-691-2.
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