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A
serpente cega
«(…)
O Açor parecia realmente despido da sua pele de cão de guarda, de olhos
espantados e fitos naquele par misteriosamente formado, com uma trepidação nas
beiçanas pendentes, escorridas de baba. Como que lhe tinham transtornado o
campo de operações: a sombra inimiga estava de portas adentro de um lugar que
ele tinha obrigação de manter limpo de todos os vultos que ali se atrevessem
sozinhos, mas em cuja população acompanhada pelos donos não tinha nada que
cheirar. E se conservava um resto de gana no lombo e no focinho anelante,
traduzida num rosnar que o vento levava em dueto, é que há sempre intervalo
entre um corte de corrente e o parar do motor. Então Margarida tomou mais
consciência da situação em que estavam, e, tornada ao ponto em que a sua
recente intimidade com João Garcia recuava sobre o antigo constrangimento de
dois estranhos, disse-lhe: vá-se! Podem ver da estrada... Não vêem. Comigo no
caminho é que é pouco prudente. Agora que nos vamos separar, sempre te digo que
temos facilitado um pouco. Esta gente da vizinhança é linguareira; mas como
havia de ser? Quando eu voltar é outra coisa. Se fizer concurso... Se for
nomeado... Mesmo que fique número três... O número três deve ir para Bragança;
é frio... Dali a um ano..., não? Ficou à espera, tomando-lhe a mão com doçura.
Margarida ouvia-o como se estivesse longe e chegasse muito devagar ao calor de
tais propostas. Deus sabe o que nos espera, daqui até lá... E, vendo-se outra
vez entre João Garcia e o cão ainda desconfiado e coçando uma orelha à pata,
aplicou o ouvido à estrada. Foi ao muro: está sempre a passar gente. João
Garcia espreitou, na ponta dos pés; dois vultos dobravam o começo da curva,
seguidos das sombras disformes: meu tio Ângelo e o Pretextato... Vão dar a sua
volta. Quanto mais perto estivermos da lâmpada, pior! Ao nome de Ângelo Garcia,
Margarida perdeu o alvoroço em que a presença do namorado e os nervos do cão a
punham. A recordação do maricas acordava nela a soberba dos Clarks, aquele
sentimento maciço, enjoado e um pouco cínico, que contribuíra para correr
Januário Garcia do escritório da casa Clark & Sons e envolvia a família
Garcia num desdém mais snobe do que odiento. Representou-se-lhe Ângelo de
bigodinho frisado a ferro, faces de menina, o cabelo ruço e melado sob o chapéu
de coco, correndo as casas da Horta com o seu pezinho atrasado. A ideia do avô
sempre doente em casa ligou-se-lhe à rápida repulsa. O pai, fora. A mãe,
sentada ao pé da voltam do avô, embrulhada no cachiné das noites compridas, com
uma irritação a que o seu feitio romântico dava uma poesia desafinada, das
pessoas que choram e riem sem ter de quê. Olhou para o casarão engolido no
escuro da quinta, apenas visível pela esteira de luz que vinha do quarto do avô
quebrar-se na janela da saleta. Um pé-de-vento abalou as faias e os cedros,
levantando-lhe a ponta do casaco e uma mecha de cabelo. João Garcia tinha de
novo a mão dela nas suas, mas aquela pausa como que a cortara do braço de
Margarida. Ia a dizer-lhe outra vez que se fosse, atraída para os lados de
casa, quando sentiu melhor o calor daquele homem parado no meio das árvores,
ali ao pé dela e a uma distância que a viagem de Lisboa tornava saudosa e sem
fim. João Garcia pareceu entender este íntimo movimento e sossegou-a: não
tenhas medo. Então não estou ao pé de ti e não hei-de voltar daqui a meses?... Mas
há tão pouco que nos falamos, e entrares na quinta assim de noite! Se nos
vissem... Teu pai vem tarde. Às vezes entra pelo portão da canada... Salto o
muro. Os cedros tornaram a ramalhar bruscamente. Agora as guinadas do vento
repetiam-se. Vinha certeiro no silêncio e experimentava fortemente as árvores,
que durante um segundo descreviam um círculo cheio, como piões no torpor. Mas
entre duas lufadas a quinta cerrava-se outra vez; ficava tudo compacto, debaixo
de um bafo. Um cheiro a lava salgada e a seiva de cedro inebriava». In Vitorino
Nemésio, Mau Tempo no Canal, 1944, Bertrand, BIS, colecção BIS, 2010, ISBN
978-989-660-041-9.
Cortesia
de Bertrand/BIS/JDACT