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Contudo, nunca deixaram de ser dois estranhos, peças de uma gigantesca
engrenagem programadas para se moverem perpetuamente em sentidos opostos,
cruzando-se a horas certas sem que alguma vez se chegassem a tocar. E agora, por
causa de um erro de agulha, por causa de uma falha de sinalização, por causa de
um mal-entendido, por causa de um azar dos diabos ou da sórdida vontade de
Deus, por causa de um estupor qualquer que se esqueceu de avisar a central de
que o comboio com destino a Vilar Formoso seguia com dezassete minutos de atraso,
estes dois homens não podiam cumprir até ao fim o seu destino de homens estranhos,
de homens condenados a nunca se conhecerem, e eram subitamente forçados a partilhar
o derradeiro momento das suas vidas. Mas regressemos ao instante em que o maquinista,
falando da paixão do pai pelas histórias aos quadradinhos, fez uma dessas pausas
que parecem anunciar uma confissão. Fosse por súbito arrependimento, ou porque
uma lembrança mais pungente lhe tomasse o espírito, ao invés da inflexão descendente
da voz que se adivinhava, o maquinista adoptou um registo agudo, já próximo do
falsete, a fazer lembrar aquelas crianças cuja excitação extravasa a tessitura do
aparelho vocal. Aos domingos, contou ele, depois da missa e do almoço, o nosso pai
levava-nos para o campo, a mim e ao meu irmão, munidos de paus e alguidares partidos
e cordas velhas e sacas de serapilheira e fruta podre e panelas de ferro enferrujado;
e então, inspirados pelas diferentes aventuras que acompanhávamos através das revistas
de banda desenhada que chegavam no Regional que vinha de Lisboa, encenávamos crimes
de espionagem, golpes palacianos, invasões intergalácticas, sangrentas batalhas
que opunham as cruéis tropas de Gengis Khan às mais sanguinárias tribos de peles-vermelhas.
Resolvidas as contendas, que amiúde nos cobriam o corpo de mazelas, estendíamo-nos
extenuados no chão, a olhar as nesgas de céu que se vislumbravam por entre os ramos
das árvores e a perguntar ao nosso pai como é que o mundo tinha começado: então
e as aves? Isso foi ao quinto dia, juntamente com os monstros marinhos e todos os
seres vivos que se movem nas águas. Assim, de repente? Tomem lá umas asas e voem?
Parece que sim. Todas ao mesmo tempo? Cegonhas, pardais, gaivotas, pombos, falcões,
águias, pintassilgos, melros, corvos, codornizes? Com alguns minutos de diferença,
provavelmente. Deve ter sido uma coisa linda de se ver, tudo a bater as asas. Podem
crer. Uma coisa linda... Para últimas palavras de um homem à superfície da Terra,
esta evocação de um pequeno diálogo com o seu pai não está nada mal; aliás, tendo
em conta o sem-número de constrangimentos em que nos encontramos, seria difícil
descobrir melhor. Por isso, tu aí, tu que te tens mantido calado desde o princípio
desta aventura, tu que sempre foste incapaz de levantar a voz, mesmo quando te sobravam
razões para isso, tu que vens aos comandos dessa poderosa locomotiva que
encerra nos seus motores mais cavalos do que aqueles que participaram na
batalha de Borodino, aproveita a deixa; repara bem, é uma excelente deixa, a passarada
toda a bater as asas; lembra-te de que os comboios continuam em rota de
colisão, não há tempo a perder; toma a palavra e conta-lhe que só começaste a trabalhar
nos Caminhos-de-ferro porque chumbaste nos testes de admissão à Força Aérea. Conta-lhe
que, em miúdo, o teu sonho era ser piloto de aviões...» In João Ricardo Pedro, Um Postal
de Detroit, 2016, Publicações dom Quixote, Leya, 2016, ISBN 978-972-205-949-7.
Cortesia
PdonQuixote/JDACT