domingo, 2 de outubro de 2016

Um Postal de Detroit. João Ricardo Pedro. «… lembra-te de que os comboios continuam em rota de colisão, não há tempo a perder; toma a palavra e conta-lhe que só começaste a trabalhar nos caminhos-de-ferro…»

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«(…) Contudo, nunca deixaram de ser dois estranhos, peças de uma gigantesca engrenagem programadas para se moverem perpetuamente em sentidos opostos, cruzando-se a horas certas sem que alguma vez se chegassem a tocar. E agora, por causa de um erro de agulha, por causa de uma falha de sinalização, por causa de um mal-entendido, por causa de um azar dos diabos ou da sórdida vontade de Deus, por causa de um estupor qualquer que se esqueceu de avisar a central de que o comboio com destino a Vilar Formoso seguia com dezassete minutos de atraso, estes dois homens não podiam cumprir até ao fim o seu destino de homens estranhos, de homens condenados a nunca se conhecerem, e eram subitamente forçados a partilhar o derradeiro momento das suas vidas. Mas regressemos ao instante em que o maquinista, falando da paixão do pai pelas histórias aos quadradinhos, fez uma dessas pausas que parecem anunciar uma confissão. Fosse por súbito arrependimento, ou porque uma lembrança mais pungente lhe tomasse o espírito, ao invés da inflexão descendente da voz que se adivinhava, o maquinista adoptou um registo agudo, já próximo do falsete, a fazer lembrar aquelas crianças cuja excitação extravasa a tessitura do aparelho vocal. Aos domingos, contou ele, depois da missa e do almoço, o nosso pai levava-nos para o campo, a mim e ao meu irmão, munidos de paus e alguidares partidos e cordas velhas e sacas de serapilheira e fruta podre e panelas de ferro enferrujado; e então, inspirados pelas diferentes aventuras que acompanhávamos através das revistas de banda desenhada que chegavam no Regional que vinha de Lisboa, encenávamos crimes de espionagem, golpes palacianos, invasões intergalácticas, sangrentas batalhas que opunham as cruéis tropas de Gengis Khan às mais sanguinárias tribos de peles-vermelhas. Resolvidas as contendas, que amiúde nos cobriam o corpo de mazelas, estendíamo-nos extenuados no chão, a olhar as nesgas de céu que se vislumbravam por entre os ramos das árvores e a perguntar ao nosso pai como é que o mundo tinha começado: então e as aves? Isso foi ao quinto dia, juntamente com os monstros marinhos e todos os seres vivos que se movem nas águas. Assim, de repente? Tomem lá umas asas e voem? Parece que sim. Todas ao mesmo tempo? Cegonhas, pardais, gaivotas, pombos, falcões, águias, pintassilgos, melros, corvos, codornizes? Com alguns minutos de diferença, provavelmente. Deve ter sido uma coisa linda de se ver, tudo a bater as asas. Podem crer. Uma coisa linda... Para últimas palavras de um homem à superfície da Terra, esta evocação de um pequeno diálogo com o seu pai não está nada mal; aliás, tendo em conta o sem-número de constrangimentos em que nos encontramos, seria difícil descobrir melhor. Por isso, tu aí, tu que te tens mantido calado desde o princípio desta aventura, tu que sempre foste incapaz de levantar a voz, mesmo quando te sobravam razões para isso, tu que vens aos comandos dessa poderosa locomotiva que encerra nos seus motores mais cavalos do que aqueles que participaram na batalha de Borodino, aproveita a deixa; repara bem, é uma excelente deixa, a passarada toda a bater as asas; lembra-te de que os comboios continuam em rota de colisão, não há tempo a perder; toma a palavra e conta-lhe que só começaste a trabalhar nos Caminhos-de-ferro porque chumbaste nos testes de admissão à Força Aérea. Conta-lhe que, em miúdo, o teu sonho era ser piloto de aviões...» In João Ricardo Pedro, Um Postal de Detroit, 2016, Publicações dom Quixote, Leya, 2016, ISBN 978-972-205-949-7.

Cortesia PdonQuixote/JDACT