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Correale telefonava a Francesca e a Laura várias vezes por semana, geralmente ao
fim da tarde. Os telefonemas começavam invariavelmente com o anúncio de um novo
desenvolvimento. Una cosa tremenda!, exclamava, prosseguindo com os pormenores
científicos referentes à descoberta que investigadores haviam feito no raio X de
algum quadro de Caravaggio. A Francesca, nunca lhe parecia uma cosa tremenda.
O pior era que Correale parecia telefonar precisamente quando ela ia a sair de casa,
ou a altas horas da noite quando estava prestes a adormecer. Conseguia detectar-lhe
na voz o tom de alguém que se preparava pata uma longa conversa. Imaginava-o a viver
sozinho naquele apartamento minúsculo com os caixotes por desembalar, a pensar na
mulher, que o deixara por causa de outro homem. Certa vez, Francesca observara
que ele tinha um ar inseguro, como se o chão por debaixo de seus pés fosse movediço.
Nos momentos de boa disposição, tratava-a a ela e a Laura por tesoro e cara,
ao passo que noutros momentos, quando alguma mesquinharia o perturbava, ficava furibundo,
com os olhos esbugalhados, desancando a mão em cima da mesa. Nesses momentos, Francesca
temia-o. Começou a evitar os seus telefonemas. Laura aturava-o melhor. Não hesitava
em responder-lhe na mesma moeda, aos gritos. Uma vez em que ele lhe ligara depois
da meia-noite, disse-lhe num tom zangado: Giampaolo! Não sabe que horas são? Acha
que eu não durmo? Ele pedira-lhe desculpas, contou Laura a Francesca, mas
depois continuara a falar e Laura não tivera coragem de desligar o telefone.
Certa
tarde de Inverno, estava Francesca sozinha no arquivo de Doria Pamphili, quando
se deparou com uma grande quantidade de cartas amarradas com cordel, redigidas por
Girolamo Pamphili, um cardeal que falecera no ano de 1610. Vivera em Roma
durante a época de Caravaggio e certamente conhecera a fama do pintor. O seu círculo
de amigos incluía nomes como os de Ciriaco Mattei, o proprietário do outro S.
João, do Cardeal del Monte e de Vincenzo Giustiniani, personalidades que haviam
adquirido obras directamente a Caravaggio. Francesca achou que valeria a pena ler
aquelas missivas. Laura pusera a ideia de parte, considerando-a uma perda de tempo.
Não obstante, Francesca decidira tentar. Começou aleatoriamente, retirando uma carta
do volumoso monte. E sucumbiu ao delírio do investigador. As cartas de Girolamo
incluíam uma descrição de Roma, pormenorizada e íntima, perdida no tempo. Descrevia
pormenorizadamente a aquisição de uma nova e extravagante carruagem, o intenso
calor do Verão de Roma e os seus planos de fuga para a sua villa no campo, descrevia jantares, a política da igreja e também a
sua saúde e higiene. Adoecera por volta dos cinquenta anos, um problema de brônquios
e pulmões, escrevera explicando a um amigo. Confinado à cama, com tempo de
sobra, descrevia detalhadamente o tratamento, a dieta, as hemorragias cíclicas,
as sanguessugas que lhe aplicavam na pele para extraírem os venenos. De
repente, as suas cartas cessaram. O mal de que padecia, fosse qual fosse, levara
a melhor e pusera fim à sua vida. Francesca estava fascinada com aquela
descrição, mas nada encontrou que se relacionasse com o quadro, nem mesmo qualquer
referência a Caravaggio. Como era óbvio, consultara somente uma exígua amostra das
cartas. Compreendeu que teria de passar meses a ler no arquivo Pamphili. Talvez
viesse a encontrar algo importante, mas as probabilidades eram diminutas. E ela
não dispunha de meses. Laura tinha razão, se era à procura da origem do quadro de
Doria que se encontrava, Francesca estava a desperdiçar o seu tempo». In
Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa,
2006, ISBN 978-972-233-676-2.
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