sábado, 1 de outubro de 2016

A Obra Prima Desaparecida. Jonathan Harr. «Certa tarde de Inverno, estava Francesca sozinha no arquivo de Doria Pamphili, quando se deparou com uma grande quantidade de cartas amarradas com cordel, redigidas por Girolamo Pamphili, um cardeal…»

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«(…) Correale telefonava a Francesca e a Laura várias vezes por semana, geralmente ao fim da tarde. Os telefonemas começavam invariavelmente com o anúncio de um novo desenvolvimento. Una cosa tremenda!, exclamava, prosseguindo com os pormenores científicos referentes à descoberta que investigadores haviam feito no raio X de algum quadro de Caravaggio. A Francesca, nunca lhe parecia uma cosa tremenda. O pior era que Correale parecia telefonar precisamente quando ela ia a sair de casa, ou a altas horas da noite quando estava prestes a adormecer. Conseguia detectar-lhe na voz o tom de alguém que se preparava pata uma longa conversa. Imaginava-o a viver sozinho naquele apartamento minúsculo com os caixotes por desembalar, a pensar na mulher, que o deixara por causa de outro homem. Certa vez, Francesca observara que ele tinha um ar inseguro, como se o chão por debaixo de seus pés fosse movediço. Nos momentos de boa disposição, tratava-a a ela e a Laura por tesoro e cara, ao passo que noutros momentos, quando alguma mesquinharia o perturbava, ficava furibundo, com os olhos esbugalhados, desancando a mão em cima da mesa. Nesses momentos, Francesca temia-o. Começou a evitar os seus telefonemas. Laura aturava-o melhor. Não hesitava em responder-lhe na mesma moeda, aos gritos. Uma vez em que ele lhe ligara depois da meia-noite, disse-lhe num tom zangado: Giampaolo! Não sabe que horas são? Acha que eu não durmo? Ele pedira-lhe desculpas, contou Laura a Francesca, mas depois continuara a falar e Laura não tivera coragem de desligar o telefone.
Certa tarde de Inverno, estava Francesca sozinha no arquivo de Doria Pamphili, quando se deparou com uma grande quantidade de cartas amarradas com cordel, redigidas por Girolamo Pamphili, um cardeal que falecera no ano de 1610. Vivera em Roma durante a época de Caravaggio e certamente conhecera a fama do pintor. O seu círculo de amigos incluía nomes como os de Ciriaco Mattei, o proprietário do outro S. João, do Cardeal del Monte e de Vincenzo Giustiniani, personalidades que haviam adquirido obras directamente a Caravaggio. Francesca achou que valeria a pena ler aquelas missivas. Laura pusera a ideia de parte, considerando-a uma perda de tempo. Não obstante, Francesca decidira tentar. Começou aleatoriamente, retirando uma carta do volumoso monte. E sucumbiu ao delírio do investigador. As cartas de Girolamo incluíam uma descrição de Roma, pormenorizada e íntima, perdida no tempo. Descrevia pormenorizadamente a aquisição de uma nova e extravagante carruagem, o intenso calor do Verão de Roma e os seus planos de fuga para a sua villa no campo, descrevia jantares, a política da igreja e também a sua saúde e higiene. Adoecera por volta dos cinquenta anos, um problema de brônquios e pulmões, escrevera explicando a um amigo. Confinado à cama, com tempo de sobra, descrevia detalhadamente o tratamento, a dieta, as hemorragias cíclicas, as sanguessugas que lhe aplicavam na pele para extraírem os venenos. De repente, as suas cartas cessaram. O mal de que padecia, fosse qual fosse, levara a melhor e pusera fim à sua vida. Francesca estava fascinada com aquela descrição, mas nada encontrou que se relacionasse com o quadro, nem mesmo qualquer referência a Caravaggio. Como era óbvio, consultara somente uma exígua amostra das cartas. Compreendeu que teria de passar meses a ler no arquivo Pamphili. Talvez viesse a encontrar algo importante, mas as probabilidades eram diminutas. E ela não dispunha de meses. Laura tinha razão, se era à procura da origem do quadro de Doria que se encontrava, Francesca estava a desperdiçar o seu tempo». In Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-233-676-2.

Cortesia de EPresença/JDACT