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As
Mulheres de Camões
Violante
de Andrade. 1543
«(…)
João III é de uma índole rara: mais quer assistir aos autos-de-fé
na
varanda do Paço da Ribeira do que dançar num baile da corte; mais quer rezar do
que receber os embaixadores; mais quer aos livros de deve e haver do que a obra
de poeta ou cronista. Mas o que mais lhe apraz é inspeccionar com minúcia a
quantidade de pimenta que entra e sai dos armazéns: cheira a mercadoria,
confere as balanças e acode na compre e venda de escravos malabares e cafres
com a mesma dedicação com que faz filhos à rainha. Tudo nele é um compra-e-vende.
Reconheço-lhe algum engenho e aguda memória, mas sei que alcançou pouco nas
letras e nunca aprendeu bem o latim. Talvez por isso se tenha empenhado tanto
no ensino das artes. Nisso sim, admiro-o. Bastas vezes tenho sabido de mancebos
que manda estudar para o estrangeiro, financiando-lhes o sustento. A verdade é
que ousou transferir a universidade de Lisboa para Coimbra e que não se poupa a
esforços para contratar lentes da Universidade de Paris. Porém, não posso
deixar de me compadecer e de temer pelo futuro do reino. Dos nove filhos que
lhe nasceram, só dois vingaram: o infante João Manuel, muito chegado ao meu
Antoninho, e a infanta Maria Manuela, que a Espanha foi casar-se. Bofé! Agastou-me
sobremaneira o sigilo à volta desse malfadado casamento da infanta com Filipe
de Áustria, o filho de Carlos V que irá, por certo, ser o próximo rei. O sigilo
foi tamanho, que nem ao senhor meu marido, no alto posto que representa,
disseram água-vai. Uma afronta.
Não
me falta ouro, nem jóias, nem pedras preciosas; não me faltam honrarias e
deferências, não me faltam pajens, nem criados, nem escudeiros, mas falta-me
por vezes paciência para cumprir os preceitos da minha condição. Habituaram-me
a aceitá-los sem contestar e eu habituei-me a cumpri-los, a espartilhar o
coração, sem me emocionar, sem pestanejar, sem me acalorar. E assim me afeiçoei
ao lugar gelado que encontrei dentro do coração. Não só eu, todas nós. Qual das
minhas amigas ou das minhas damas de companhia pode dar-se ao luxo de guardar
para si doces e quentes sentimentos? Aquela que é espancada pelo seu marido e
senhor? A que se ajunta com o copeiro quando o marido se ausenta? A que tem
filhos bastardos e os dá à rocia sem sequer se confessar? A que oculta a entrada
do amante no convento? Se entregam o coração denunciam-se. Tenho o casamento
que meus pais ditaram e o que deve ser, com regalias, distinções e deveres para
que as nossas casas, fortunas e filhos se guardem e medrem e hajam como Deus
manda e a nobreza obriga: um casamento de linhagem e preceito que a tudo
renuncia e que tudo denuncia. Não posso, pois, enjeitar o dever de denunciar
quem vejo pecar, e faço-o de bom grado e com gosto perante o Tribunal da Santa
Inquisição (maldito) ou logo ao irmão
de el-rei, o cardeal-infante Henrique, inquisidor-gera1. Livro-me assim de
suspeitas. Quereis ser santa? Juntai-vos a eles e pecai em silêncio. Neste reino,
nesta corte e nesta casa mais vale parecer do que ser, pois que o que parece
há-de ter a força do que é. Quero pois que as bruxas ardam todas na fogueira,
bem como os que se negam a comer carne de porco e os que blasfemam contra Deus
Pai Todo-Poderoso e renegam o Senhor Santo Cristo. Quero vê-los a todos a arder
no fogo dos infernos, tal como os vi e extasiei no Terreiro do Paço, no primeiro
auto-de-fé deste reino, no ano da graça de 1540». ???» In Maria João Lopo de Carvalho,
Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.
Cortesia de Odo
Livro/JDACT