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«Não somos apenas o que pensamos ser. Somos
mais: somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras
que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos sem querer». Sigmund Freud
«Desde
os primórdios dos tempos que os homens perpetuam a sua passagem pelo mundo através
de histórias que, com arte e alguma manha, são contadas e transmitidas de geração
em geração, de forma corriqueira e sem compromisso. É que uma lenda, quer tenha
um fundo de verdade ou seja apenas uma mentira descarada, é sempre uma boa história.
Se for contada com paixão, desperta emoções, prega sustos e, provavelmente por isso,
raramente é esquecida. O universo temático das lendas, mesmo no que toca ao
sobrenatural, é vastíssimo e deu pano para mangas nos dois livros anteriores. O
primeiro falava do maior mistério da vida: a morte. Ou melhor, sobre a eterna interrogação
sobre o que nos aguardará depois do fim, e deu origem a uma recolha polémica: relatos
sobre experiências em casas assombradas e aparições de fantasmas. Mas do medo ficava
ainda muito por explorar. Seguiu-se uma viagem pelos pontos negros de Portugal,
a sítios tolhidos pelo pavor e pela superstição. Agora, chegou a hora desobscurecer,
mas nem por isso deixar de parte o sobrenatural e a carga extraordinária dos relatos,
escrevendo sobre um tema que, desde o início, me era o mais querido: os seres fantásticos.
Na verdade, não há narrativas mais fabulosas do que aquelas que nos desafiam a saltar
a dimensão da espécie humana para obrigarem a mergulhar num universo povoado de
criaturas mágicas e com características fabulosas. Nesta nova pesquisa que novamente
me levou a percorrer os lugares mais recônditos do País, a desvendar os pergaminhos
de pequenas e grandes bibliotecas ou a ouvir de viva voz o povo, o que descobri
foi surpreendente: um país que, sem grande relutância, ainda é povoado por trasgos,
olharapos, gigantes, duendes e diabretes, fadas de lobos, monstros, lobisomens,
entre outros seres magníficos e poderosos que habitam igualmente a nossa tradição
oral. Os relatos, descrições deliciosas pela riqueza (e estranheza) de pormenores
que a vista (ou será antes a imaginação?) humana gorou alcançar, deram a este livro
um cunho ainda mais fantástico e encantatório do que os seus dois antecessores.
Na verdade,
creio que nunca o epíteto pelo qual muitas vezes se refere a tradição oral, o maravilhoso
popular, fez tanto sentido como agora. Este é o livro onde as explicações fazem
ainda menos sentido. Não há aqui espaço para grandes reflexões sobre a realidade
ou veracidade deste ou daquele relato. Quis apenas dar-se um lugar à imaginação
e à fantasia, e mostrar como ambas estão tão marcadamente presentes nas nossas raízes
portuguesas. Raízes essas que, apesar de nos parecerem únicas, são quase sempre
fruto da influência de outros povos que outrora passaram pela Península, e daí estas
histórias povoadas de seres mitológicos se assemelharem tanto a outras que nos habituámos
a atribuir à cultura nórdica, grega ou anglo-saxónica. A explicação é simples: com
os nossos vizinhos partilhamos antepassados ancestrais e, por isso, corre-nos também
no ADN a crença em fadas, em elfos, em feiticeiros, etc. É igualmente verdade
que nos tempos de hoje, em que o homem acredita já ter desvendado quase tudo sobre
o ambiente em que vive e o fluxo de informação e tecnologias digitais deixa pouco
espaço para o mistério e para a efabulação, as lendas são como um pequeno
tesouro, um baú de memórias, cultos e tradições de um tempo que, embora tão próximo
do nosso na imensidade da contagem do tempo, foi tão diferente. Não foi sequer
há muito tempo que os nossos avós tremeram como varas verdes com o tropel de passos
acelerados e ressonantes que acreditavam pertencer a lobisomens. Se fossem homens
do mar, talvez sonhassem com o dia em que a sua faina, sempre tão dura e fria, fosse
subitamente interrompida pelos encantos de uma bela sereia, que decerto lhes proporia
o mais tórrido amor. Mas se fossem gente do campo, era bem possível que tivessem
pressentido os poderes insondáveis da magia das bruxas e dos feiticeiros que se
reuniam em clareiras para dançar à volta de uma fogueira e atentar a alma dos fracos
com artimanhas arquitectadas pelo diabo! Eram curiosos estes tempos, em que a
fé dos homens conhecia extremos e andava lado a lado com crendices herdadas dos
seus ancestrais pagãos! Mas o tempo passou e mudou tudo rapidamente. A electricidade
chegou mesmo aos lugares mais remotos, onde antes o escuro da noite e o uivo do
vento abalavam até as certezas dos corações mais fortes. A televisão entrou para
ficar no aconchego da sala, substituindo a magia das histórias contadas ao serão.
Assim, as lendas e as histórias de encantar, que sempre foram uma boa forma de o
homem organizar o mundo e expressar por palavras o que de mais subjectivo lhe corria
na alma, foram ficando guardadas na memória dos velhos». In Vanessa Fidalgo, Seres Mágicos
em Portugal, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-626-575-5.
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