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Lentas, como de enterro, um sino badala pancadas que não são de relógio a dar
horas nem das Trindades, pois o sol vai alto. Não sabe onde está, quem é ou o
que o trouxe, mas nada o surpreende ou transforma, sente sua a vestimenta grossa
de feitura antiga, os tamancos, o gorro de lã, as mãos calejadas. Ignora o que
o trouxe, donde vem ou porque pára defronte daquela casa de paredes toscas, janelas
estreitas, um fumo de lareira a subir da telha-vã. Estaca e aguarda como se lho
ordenassem, ouve o rangido, vê que uma das janelas se abre, puxada por mão
invisível. Demora a que a mulher se mostre por inteiro, anciã de cabeio
revolto, olhos desorbitados, o rosto uma estampa de desespero, os lábios
torcidos num esgar. Coberta do que parece um sambenito de pano encardido, debruça-se,
aponta com o braço descarnado, ruge um mandamento: diz à minha filha que vou morrer!
E de súbito, como se tivesse caído num alçapão, some-se da janela. Queda-se
petrificado. Nada reconhece do lugar nem do tempo, o tanger do sino vai esmorecendo,
os vultos desapareceram. Que poder traduziu da língua desconhecida o recado
para que ele entendesse? Para que foi chamado? Terá sido sonho em que se perdeu,
laço que o prende à estranha e ao tão assombrado lugar? Quer esquecer e não
pode. Seca os olhos na mão, tosse a desfazer a gosma que lhe corta o ar. Ali no
alto, um escuro de breu, em momentos assim perde o entendimento e, feito outro,
encarna neste, naquele, incapaz de distinguir se viu, se ouviu, sem força que o
defenda, obrigado a assistir e a recordar.
Serras.
Despenhadeiros. Pedregulhos. Acolá um tufo de verde, além um riacho, caminhos onde
há muito não passa alma, silvedos, vertentes, penedias que semelham muros de fortaleza.
Um longe de terras de escasso pão e de inocência medieva, gente sem nome nem conta,
a viver no que alguns chamam o antigamente, o primitivo de tempos idos. Calam e
escondem, olham de lado, vivem o medo, a pobreza, geram como animais, aceitam o
destino. Será que um dia lho disseram? Ouviu contar em segredo? Estes dois, que
em noite de grande calor e fraco luar se sentam num penhasco, mudos, costas voltadas
e cabeça baixa, trazem horas de caminho, há muito estariam ali não fosse o
terem vindo aos bordos, mais as vezes que se encostaram a golfar, ou arriando as
calças por não segurarem a tripa. Têm pela frente meia légua plana de searas, uma
descida de mau piso e muitas voltas, o riacho, a calçada que levará cada um a
sua casa. Por enquanto arrotam, peidam, repetem o vómito. Um cai e fica de bruços,
o outro escorrega do assento mas consegue firmar-se, desaperta a braguilha, tropeça,
cambaleia, avança para o camarada e, vagaroso, mija-lhe por cima. Riem ambos, engalfinham-se
aos murros de bebedeira, não sentem se os dão ou recebem, empurram-se e caem às
arrecuas, adormece um contra o pedregulho, o outro na poça de mijo. Desde miúdos
une-os estranha afeição, constantemente a procurar-se, sofrendo se se não vêem.
Cresceram maldosos, bons na fisga e nas armadilhas, ágeis que nem macacos a roubar
no cocuruto das cerejeiras os ninhos da passarada. Feitos homens, acasalaram, geraram,
menos ligados à família que ao sentimento que constantemente os faz procurar-se
no trabalho ou na folga. Assentaram praça juntos. Cumprido o tempo, festejaram
com uma carraspana de três dias, vencendo a que usavam tomar na festa do padroeiro.
Acordam e ainda é noite. Não se encaram nem falam, sofrem o ar morno, limpam o suor
às costas da mão. Lado a lado, o passo mais seguro, viram da rodeira para o atalho.
Na descida vão em fila, às vezes escorregam na caruma dos pinhos e embatem um no
outro, empurram-se de marotice, o que primeiro a vê desata a correr e salta
para a ribeira, que ali faz poço. Embora a água só dê pelo peito, braceja a fingir
que nada, sem tempo para se desviar quando o companheiro lhe cai em cima de trambolhão,
ambos a perder o pé, a afundarem-se com o peso da roupa encharcada». In J.
Rentes de Carvalho, O Meças, Quetzal Editores, Língua Comum, Lisboa, 2016, ISBN
978-989-722-286-3.
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