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de wikipedia e jdact
«Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna precipitá-la
num incêndio?» In Shakespeare
«(…) Esgotara-se o pecúlio.
Norberto fez menção de erguer-se. Salter notou a grosseria; mas desculpou-a ao
pai de Carlota. Retirou-se acompanhado até ao pátio, honra que três vezes
recusara, mas, à quarta, o negociante disse que ia para o escritório tratar
da labutação dos arrozes que estavam à descarga. Isto é que era
legitimamente dele. Carlota, enquanto a visita esteve, não obstante o grande
espaço que a distanciava da sala, apurava o ouvido na extrema de um corredor
por onde poderia embuzinar a voz do pai, se ele a engrossasse, como costumava,
nos agastamentos. Ouvindo rumor de passos na saída, correu ao seu quarto, e
sentiu-se desanimada para receber a visita colérica do pai. Até então dera-lhe
o amor afoiteza para responder às iras paternais; e a risonha esperança de
permanecer poucas horas em casa, depois da expulsão de Mendonça,
afigurava-se-lhe agora uma tenção criminosa. Era o medo que a transtornava
assim; logo, porém, que o sobressalto se desvanecesse, viria a reação do amor
restituir-lhe o vigor de um propósito, cuja firmeza as ameaças do pai não
abalariam. Pouco depois, Carlota foi chamada ao quarto da mãe, e achou-a
prazenteira e jovial. O pai entrou após ela, e fingiu o mais lhano e caricioso
semblante. Carlota estava espantada, e não podia crer o que via. Diz-me cá,
menina, disse Norberto, já sabes..., ora se sabes!... O que, papá? Faz-te
tolinha, minha sirigaita! Arranjaste um marido, sem dizer água vai, assim do pé
p’ra mão como quem se casa por sua conta e risco... Carlota baixou os olhos com
humildade. Norberto perdeu um pouco do seu caráter artificial, e prosseguiu: ora,
sempre tenho uma filha como se quer! Posso-me gabar!... Nem eu nem tua mãe
valemos nada, Carlota! Vê-se um troca-tintas, e não há mais que dizer-lhe: se
quer casar comigo, estou aqui às suas ordens; vá pedir-me a meu pai, e diga-lhe
que me dê o dote que ele me ganhou a trabalhar trinta anos. Isso é bonito,
Carlota? Dona Rosália pisara rijamente o pé do marido, e conseguira
recordar-lhe a traça combinada com o doutor. Carlota começava a sentir a
reação, ia erguendo a cabeça abatida para repelir a grosseira invectiva do pai,
quando este, com velhaca subtileza, mudou para brando aspecto a severa
carranca, e prosseguiu: enfim, quem casa és tu; o mal e o bem para ti o fazes.
Se queres casar com esse rapaz, casa. Eu disse-lhe o que um bom pai deve dizer.
Consenti, com tanto que a vontade de minha filha seja essa. Que dizes a isto,
Carlota? Estás decidida a casar com o tal sr. Mendonça? Visto que meu pai não
se opõe à minha vontade... E, se eu não quisesse, casavas do mesmo modo?... Diz
lá! Se o pai não quisesse, eu havia de pedir-lhe tanto que me deixasse ser
feliz, que o meu bom pai..., consentiria... Lá isso é verdade..., replicou o
negociante, obedecendo à terceira pisadela da irmã do bacharel, eu o que quero
é a tua felicidade... Bem sabes que sou teu amigo como ninguém, ainda que te
pareça que lá o teu namorado te quer mais que eu... É boa asneira a das
raparigas, que trocam pai e mãe pelo primeiro perna-fina que lhe empisca o olho
ao dote!... (Quarta pisadela de Rosália,
e mutação de cara e diapasão de voz em Norberto) Está dito! Casarás com
o homem; mas já agora hão-se de festejar os teus dezessete anos em casa. Eu já
lhe disse a ele que esperasse um mês, e depois arranja-se isso, e está acabado
o negócio. O rapaz, pelos modos, é pobre; mas o teu dote, se Deus quiser,
chegará para tudo. Estás contente, Carlota? Oh meu querido pai!, exclamou ela,
beijando-lhe afervoradamente a mão, eu sabia que era muito meu amigo; mas não
esperava tanto da sua boa alma. Fui má filha em ter guardado este segredo;
perdoem-me, por quem são; é que eu tremia só da ideia de os desgostar, não
podendo sufocar o amor que lhe tenho..., a ele... Não chores, Carlota, que não
tens por que chorar..., disse dona Rosália. Eu choro de contentamento, minha
mãe, por ver que a minha ventura é possível sem desgostar meus pais...» In
Camilo Castelo Branco (1825-1890), Carlota Ângela, 1874, Projecto Livro Livre,
Iba Mendes, livro 585, Poeteiro Editor, Wikipedia, 2014.
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