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O
dever cívico do casamento
«(…)
Não sabemos quais seriam os hábitos matrimoniais nos primeiros tempos de Roma. Este
período, perdido nas brumas de um longínquo passado sem rasto escrito, só nos é
acessível através do prisma de alguns mitos relatados por Tito Lívio no início da
sua História de Roma. O relato mitológico do rapto das sabinas funciona como um
dos mitos vitais da cidade. Os companheiros de Rómulo, instalados no Lácio, não
têm mulheres. Ora, o futuro da cidade que estão a edificar depende da posteridade
desses primeiros colonos. Precisam de mulheres para conceber. Porém, os povos vizinhos,
nomeadamente os sabinos, opõem-se a dar as suas filhas em casamento àqueles aventureiros,
que decidem então conseguir companheiras por meio de um estratagema e de violência.
Rómulo convida os vizinhos para um espectáculo de jogos; os sabinos aceitam o convite
e vão com as mulheres e os filhos. A um sinal previamente acordado, os romanos precipitam-se
para raptar as jovens sabinas e, posteriormente, casar com elas. Este relato lendário
oculta, talvez, factos verdadeiros. Os ataques maciços de aldeia em aldeia para
conquistar mulheres não são desconhecidos nas sociedades primitivas, e é possível
que os primeiros habitantes de Roma tenham recorrido a tais práticas.
Pode ser também uma lenda que perpetua
apenas a lembrança de um rito muito antigo. Este relato foi alvo de múltiplas interpretações.
Enquanto Plutarco indica que, na época de Rómulo, as práticas são estritamente endógamas
no quadro gentilício, outros houve que viram nele um rito de exogamia. Georges
Dumézil analisa-o como um mito funcional indo-europeu. Os sabinos e o seu rei Tácio
representam a função de fecundidade, a terceira função social face às duas mais
importantes, a função religiosa e a função bélica assumidas por Rómulo e pelos seus
companheiros. A aliança entre Rómulo e Tácio dá origem à criação de uma sociedade
completa onde estão reunidas as três funções indo-europeias. O casamento e a mulher
que se torna mãe de família são o meio e o órgão da fecundidade regulamentada.
No século V a.C., a proibição do
casamento entre patrícios e plebeus teria figurado em uma das XII Tábuas. O tribuno
C. Canuleio reclama em440 a.C. para os plebeus o direito ao casamento com patrícios,
provocando o protesto destes, que se escandalizam com a abolição de todas as distinções
sociais. Porém, o tribuno leva a melhor; a Lei Canuleia, que autoriza os
casamentos entre patrícios e plebeus, é votada. A vitória dá origem, no plano
social, a um resultado muito importante: por meio dos casamentos mistos, a elite
das famílias plebeias pode começar a aceder à direcção do Estado. Na época republicana,
podem, portanto, recorrer à instituição cívica do casamento todos aqueles que são
cidadãos, homens e mulheres adultos de condição livre, bastardos de mãe cidadã e,
a partir do final da República, os antigos escravos libertos, que doravante podem
casar-se legalmente com uma pessoa de nascimento livre, com a condição de não pertencer
aos graus de parentesco proibidos. A lei é clara quanto a este ponto: os cidadãos
romanos contraem matrimónio (conubium) com cidadãos romanos; com latinos e estrangeiros,
se tal for permitido; com escravos não existe qualquer casamento (são o resumo
de um manual atribuído a Ulpiano, compilado no final do século III ou no princípio
do século IV da nossa era por um jurista desconhecido, a partir de obras de Ulpiano
e, talvez, de outros juristas clássicos; ainda que de redacção tardia, estes Tituli
apresentam a doutrina dos juristas e dos administradores do final do século II e
do principio do século III d.C., assim como a sua visão retrospectiva do sistema
legal romano). A partir do principado de Augusto, este quadro geral sofre
algumas proibições que dizem respeito aos senadores, aos seus filhos e aos seus
netos, os quais não podem casar-se com libertas, actrizes ou prostitutas. Pelo
contrário, um cavaleiro pode casar com uma liberta. O casamento com uma prostituta
continua a ser proibido a todos os cidadãos de condição livre. Um governador de
província apenas pode casar com uma habitante da província por si administrada após
o fim do seu mandato. Todas as classes sociais devem evitar a disparidade de nascimento
entre marido e mulher.
Um fundamento filosófico
Cícero,
na sua obra filosófica Dos Deveres, concordando com os peripatéticos e
com os estóicos, considera o casal como o grupo animal original do qual derivam
todos os grupos maiores: a sociedade reside primeiro na união conjugal, e
depois nas crianças. O casal e os seus filhos formam a unidade de base que
serve para fazer nascer a cidade e o Estado. O casamento é, por assim dizer, o viveiro
do Estado, e o seu objectivo é gerar crianças, liberorum creandorum causa,
de acordo com a fórmula ritual. No princípio de De inuentione, Cícero, interrogando-se
acerca da origem da eloquência, descreve o estado natural antes da civilização,
quando os homens erravam ao acaso pelos campos à maneira dos animais e quando ninguém
vira ainda casamentos legítimos: estes são um critério decisivo de civilização,
e Cícero liga todo o desenvolvimento social à união dos dois sexos no seio da instituição
do casamento». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma
Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago Marques, 2010, Lisboa,
ISBN 978-989-828-515-7.
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