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Era
uma vez um menino
«(…) Não será a melhor altura para
deixar os meus irmãos sozinhos, senhora. Está bem, e puxa-lhe os ombros contra o
seu peito, Martim Martins vira fazer-vos companhia, não tardará a chegar. Vou mandar
entregar aqui um caldo quente, um naco de carne para cada um, talvez... Batem na
porta de manso. Agora é Elvira Peres, antiga ama de Afonso. Soubera pelos filhos
do cunhado Pedro Garcia, antigo reposteiro de Afonso II, que el-rei não iria cear
e precisava de falar com ele. Dizei..., incita Sancho em voz sumida, já cansado.
Eu e meus criados levaremos amanhã cedo Afonso de novo para S. Salvador dos Arcos,
concordais, senhor Sancho? Não, senhora, não concordo..., meus irmãos ficarão comigo.
Mas meu esposo teria gostado que ele prosseguisse o treino das armas e que Estêvão
o ajudasse a superar... Vosso filho pode vir sempre que quiser, para ficar com o
colaço. Quanto a vosso esposo, João Garcia, já não vos pode aconselhar..., essas
decisões agora cabem-me a mim. Garanto-vos que Afonso continuará o treino das armas.
Olha para o infante, com firmeza na
expressão. Elvira troca depois um olhar de entendimento com Teresa. Se Sancho quer
mostrar autoridade desde já, que assim seja. Até ordens em contrário, fará como
ele ordenar. Já saciados, os barões mandam-no chamar à sala de armas. Que ainda
não, manda dizer Teresa, o rei está a acabar de cear. Quando desce, franzino e amedrontado,
repara que Abril Peres está em primeiro plano, não sabe se a disputar o poder, se
a representar os demais. Sempre ouviu falar do seu carácter violento, das manobras
de extorsão nas terras que governava. E alguns dos outros não serão melhores. Os
da família Sousa abandonaram o reino, como inimigos do pai. Identifica-os a todos,
num varrimento ocular urgente. Rodrigo Mendes Sousa ficou, Gonçalo Garcia partiram
um dia e voltaram, quando seu pai fez um acordo provisório com as irmãs. Afastaram-se
outra vez, reaparecem agora...
Pêro Anes de Portocarreiro e Soeiro
Gomes Tougues ainda não consegue avaliar. Em Martim Anes de Riba Vizela e Gil Vasques
Soverosa, tem plena confiança. O mesmo pode dizer dos primos Martim Gil Arões, da
família dos Guedões Refojo Basto e Fernando Fernandes Cogominho. Ou dos Velho, de
Marco de Canaveses e Baião, ou dos Peres Espinhel, ligados aos de Riba de Vizela.
Avalia agora melhor os primos Portocarreiro, o representante do arcebispo de
Braga. Deve haver bons elementos em cada lado desta e das outras linhagens. O que
impede a harmonia neste começo de reinado é o facto de serem adversários uns
dos outros. Gil Vasques e Estêvão Soares Silva não se podem ver, mas ele precisa
de ambos, por razões diferentes. Gil ajudou a executar os bens do arcebispo de
Braga no julgado de Coimbra, a mando do falecido rei. É uma das cabeças mais
lúcidas para exigirem contrapartidas às pretensões do arcebispo Estêvão. O
arcebispo e o garante das relações cordiais com o papa, com a Igreja do reino, da
Ibéria toda.
Abril Peres é o primeiro a falar,
agora sentado no escano, de perna traçada e olhos piscos. Deve ter bebido uma canada
de vinho, como é costume. Sabeis que tudo fica como estava, não sabeis? Se vos referis
às funções de cada um, sei muito bem, meu pai escreveu-me há um mês, a contar
tudo. E o que dizeis? Pergunta Gonçalo Mendes com ar sonolento. Mesmo que dissesse
alguma coisa, iria adiantar? O chanceler abre os olhos, franze a testa, sem
esconder uma ponta de raiva pela ironia. Parece-lhe que terão de tomar medidas
para domar o potro. Aceito a vontade de meu pai e espero que me ajudeis a governar,
conclui o pequeno Sancho.
Governaremos nós em vosso nome, preparando
a transição conforme vosso pai determinou. Eu como chanceler e Pêro Anes Nóvoa como
mordomo, por enquanto, faremos o que estiver ao nosso alcance. Por que dizeis por
enquanto? Henriques Mendes Sousa adianta-se. Deliberámos que eu seria o vosso tutor
principal e que daqui a seis meses assumiria o lugar de Pêro. Como quiserdes,
mas Gonçalo não falou do alferes... Falo eu, senhor Sancho, Martim Anes avança um
passo, responderei por mim e pelas minhas acções. Pôr-vos-ei ao corrente dos planos
traçados por nosso senhor, vosso pai, agora mesmo, se assim o desejardes. Agradeço,
Martim, mas este é um momento de luto..., talvez seja melhor adiar para amanhã as
questões da governação. Só quero agradecer o apoio e afirmar que muito prezo o entendimento
na minha cúria». In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições
Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.
Cortesia de ESdeEmergência/JDACT