sexta-feira, 16 de junho de 2017

E se Obama fosse Africano. Mia Couto. «O episódio da estação hidrométrica passou a ser um dos alimentos do meu sentimento de esperança»

jdact

O guardador de rios
«Depois da Independência, um programa de controlo dos caudais dos rios foi instalado em Moçambique. Formulários foram distribuídos pelas estações hidrológicas espalhadas pelo país e um programa de registo foi iniciado para os mais importantes cursos fluviais. A guerra de desestabilização eclodiu e esse projecto, como tantos outros, foi interrompido por mais de uma dúzia de anos. Quando a Paz se reinstalou, em 1992, as autoridades relançaram o projecto acreditando que, em todo o lado, era necessário recomeçar do zero. Contudo, uma surpresa esperava a brigada que visitou uma isolada estação hidrométrica no interior da Zambézia. O velho guarda tinha-se mantido activo e cumprira, com zelo diário, a sua missão durante todos aqueles anos. Esgotados os formulários, ele passou a usar as paredes da estação para grafar, a carvão, os dados hidrológicos que era necessário registar. No interior e exterior, as paredes estavam cobertas de anotações e a velha casa parecia um imenso livro de pedra. Orgulhoso, o guarda recebeu os visitantes à entrada e apontou para a madeira da porta: começa-se a ler por aqui, para ir habituando os olhos ao escuro. A esperança é a última a morrer. Diz-se. Mas não é verdade. A esperança não morre por si mesma. A esperança é morta. Não é um assassínio espectacular, não sai nos jornais. É um processo lento e silencioso que faz esmorecer os corações, envelhecer os olhos dos meninos e nos ensina a perder crença no futuro.
O episódio da estação hidrométrica passou a ser um dos alimentos do meu sentimento de esperança. Como se me lembrasse que devo dialogar com invisíveis rios e tudo em meu redor podem ser paredes onde eu nego a tentação do desalento.
Tal como o anterior Pensatempos, este não é um livro de ficção. Os textos que aqui se reúnem cumprem a missão de intervenção social que a mim mesmo me incumbo como cidadão e como escritor. Com a excepção do artigo sobre a eleição de Obama, todos os restantes textos foram concebidos para alocuções a serem proferidas em encontros e colóquios dentro e fora de Moçambique. Conservei o mais possível a forma coloquial e deixei intencionalmente escapar, aqui e ali, pequenas repetições e improvisações.
Alguns destes textos foram concebidos para o contexto de Moçambique e, eventualmente, pecarão por essa especificidade para o leitor não moçambicano. Acredito, porém, que os rios que percorrem o imaginário do meu país cruzam territórios universais e desembocam na alma do mundo. E nas margens de todos esses rios há gente teimosamente inscrevendo na pedra os minúsculos sinais da esperança. In Mia Couto.

Mia Couto, E se Obama fosse Africano, Edições Caminho, colecção Outras Margens, 2009, ISBN 978-972-212-023-4.

Cortesia ECaminho/JDACT