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O guardador de rios
«Depois da Independência, um
programa de controlo dos caudais dos rios foi instalado em Moçambique. Formulários
foram distribuídos pelas estações hidrológicas espalhadas pelo país e um
programa de registo foi iniciado para os mais importantes cursos fluviais. A
guerra de desestabilização eclodiu e esse projecto, como tantos outros, foi
interrompido por mais de uma dúzia de anos. Quando a Paz se reinstalou, em
1992, as autoridades relançaram o projecto acreditando que, em todo o lado, era
necessário recomeçar do zero. Contudo, uma surpresa esperava a brigada que
visitou uma isolada estação hidrométrica no interior da Zambézia. O velho
guarda tinha-se mantido activo e cumprira, com zelo diário, a sua missão
durante todos aqueles anos. Esgotados os formulários, ele passou a usar as
paredes da estação para grafar, a carvão, os dados hidrológicos que era necessário
registar. No interior e exterior, as paredes estavam cobertas de anotações e a
velha casa parecia um imenso livro de pedra. Orgulhoso, o guarda recebeu os
visitantes à entrada e apontou para a madeira da porta: começa-se a ler por
aqui, para ir habituando os olhos ao escuro. A esperança é a última a morrer.
Diz-se. Mas não é verdade. A esperança não morre por si mesma. A esperança é
morta. Não é um assassínio espectacular, não sai nos jornais. É um processo
lento e silencioso que faz esmorecer os corações, envelhecer os olhos dos
meninos e nos ensina a perder crença no futuro.
O episódio da estação hidrométrica
passou a ser um dos alimentos do meu sentimento de esperança. Como se me
lembrasse que devo dialogar com invisíveis rios e tudo em meu redor podem ser
paredes onde eu nego a tentação do desalento.
Tal como o anterior Pensatempos,
este não é um livro de ficção. Os textos que aqui se reúnem cumprem a missão de
intervenção social que a mim mesmo me incumbo como cidadão e como escritor. Com
a excepção do artigo sobre a eleição de Obama, todos os restantes textos foram
concebidos para alocuções a serem proferidas em encontros e colóquios dentro e
fora de Moçambique. Conservei o mais possível a forma coloquial e deixei
intencionalmente escapar, aqui e ali, pequenas repetições e improvisações.
Alguns destes textos foram
concebidos para o contexto de Moçambique e, eventualmente, pecarão por essa
especificidade para o leitor não moçambicano. Acredito, porém, que os rios que
percorrem o imaginário do meu país cruzam territórios universais e desembocam
na alma do mundo. E nas margens de todos esses rios há gente teimosamente
inscrevendo na pedra os minúsculos sinais da esperança. In Mia Couto.
Mia
Couto, E se Obama fosse Africano, Edições Caminho, colecção Outras Margens, 2009,
ISBN 978-972-212-023-4.
Cortesia ECaminho/JDACT