jdact
«(…) Numa das portas laterais do
convento, a criada esperava escondidamente. Manuel entrou e percorreu um dos
muitos corredores estreitos e escuros que comunicavam com o exterior. Passaram
algumas portas grandes, fechadas com trancas grossas que foi preciso erguer,
passaram um celeiro e um palheiro. O corredor era percorrido com cuidado, uma
camada de pó fino e alguma palha acumulava-se nas orlas, no caminho menos percorrido.
Algumas teias de aranha pendiam dos cantos do tecto alto. Com uma candeia na
mão, a dita criada parou e deixou-o perto de uma porta mais baixa onde, pelas frestas
da madeira, a semiobscuridade se cruzava com a luz do dia. Puxou o gonzo que
chiou um pouco, fez sinal para que avançasse, e Manuel passou a dita
portinhola. Encontrou-se então num jardim pequeno, mesmo debaixo de um sicómoro
farfalhudo. Isabel estava encostada à parede caiada, mesmo ao lado da dita
porta e quase saltou quando ouviu a porta a abrir.
Sou eu! Manuel! Perdoai-me,
senhora, não vos queria assustar..., a voz dele era baixa e quente, transpirava
volúpia. Não tem importância, respondeu Isabel, ainda arquejando. Empurrava
nervosamente o cabelo para dentro do véu branco e ralo. Podemos falar um pouco?
Sim. Aqui podemos. Pedi à criada para que me avisasse, caso visse alguém por
perto.... Isabel retirou a mão de baixo da parte dianteira do hábito e
estendeu-lha aberta, dizendo muito nervosa: trouxe-vos isto. Uma recordação... Manuel
viu uma pequena medalha de São Dinis em cuja argola estava atada, em forma de
laço, uma fita de linho verde. Recebeu-a com um sorriso aberto.
Que bonita! Muito vos agradeço!,
e colocou-a na sua abotoadura, bem à vista. Depois, insinuou-se junto dela.
Apenas um repassar de roupagens. Um leve toque nos seus dedos. Não pretendia
grandes falas. Isabel não era, de resto, mulher de grandes discursos. Os olhares
encontraram-se e ali ficaram. Quedos. Silenciosos. Os olhos azuis dela com a
luz do sol ficavam como água, tão inebriantes que Manuel não podia apartar-se
deles. Não olhou sequer para a sua face perfeita e frágil, para a boca estreita
e as maçãs do rosto salientes, ou para a sua pele tão alva como a manhã. Quanto
a ela, olhava-lhe o negro dos olhos e a barba aparada e a forma do seu rosto,
forte e másculo, de maxilares salientes. E assim permaneceram por longos
momentos, espantados um com o outro, até que Manuel pegou na sua mão pequena e
a levou à boca muito suavemente. Ela pôde então sentir a suavidade dos seus
lábios nas costas da mão e depois, lentamente, na palma dela, e o seu olhar
sempre pousado no olhar dele, e os sentimentos em turbilhão, como se tudo fosse
razão para estarem ali. A tentação da carne!, cogitava ela. O apelo da carne!,
discorria ele. E, de repente, como se saísse de um sonho de que não queria
acordar, Isabel caiu em si. Arrependida, como sabia que iria ficar, desesperada
por gostar sumamente do que estava a sentir, a noviça desatou a correr pelo
jardim na direcção do claustro onde desapareceu. Manuel, pregado ao chão, não sabia
se havia de extravasar a sua fúria pelo malogro, se ficar contente pela batalha
invulgar que deveria travar. Afinal, esta era uma luta que poucas mulheres lhe
davam». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012,
ISBN 978-989-555-830-8.
Cortesia de
OdoLivro/JDACT