cortesia de wikipedia e jdact
«(…) O menino era Pietro della Chiesa e ainda não tinha cinco
anos. Desde o dia em que o recolhera, abandonado na porta da igreja de Santa
Maria, quase morto, e, contrariando todos os prognósticos, sobreviveu, o padre
soube que não seria como os demais meninos do orfanato. Assim como todos
os seus irmãos de infortúnio, o pequeno foi registado no precário, ilegível e
muitas vezes esquecido Registo
da Nascita, com o sobrenome Della Chiesa (literalmente, Da
Igreja, sobrenome dado aos órfãos.). Mas, diferentemente dos outros, cujos
nomes correspondiam ao do santo do dia em que ingressavam no Ospedale degli Innocenti, o padre Verani decidiu quebrar a regra e baptizá-lo Pietro,
em sua própria homenagem, uma vez que se chamava Pietro Tomasso. O menino logo
demonstrou uma curiosidade nada comum. Seus olhos, negros e vivos, examinavam
tudo com um inusitado interesse. Talvez por ser o protegido do padre, sempre
gozou, no Ospedale, de maiores atenções que os demais. Mas o certo é que,
muito mais cedo que o normal, começou a fixar o seu olhar nos objectos ao seu
redor e começou a desenhá-los. Para isso, muito precocemente, aprendeu a
utilizar tudo aquilo que pudesse servir para deixar rasto, tanto no chão como
nas paredes, na sua roupa e até no próprio corpo. A irmã Maria, uma portuguesa
de pele morena que era encarregada dele, dia após dia descobria, escandalizada,
as novas peripécias do pequeno. Qualquer coisa era boa para deixar testemunho
de sua iniciante vocação: barro, pó, restos de comida, carvão, gesso arranhado
das paredes. Qualquer matéria que caía em suas mãos era utilizada de maneira
impiedosa sobre qualquer imaculada superfície que estivesse ao seu alcance. Se
a irmã Maria o colocava de castigo, sempre dava um jeito de não interromper a sua
obra: insectos amassados pacientemente misturados a seus próprios excrementos
eram, para o pequeno Pietro, a mais estimada das têmperas. O grande pátio
central era o seu mais extraordinário armazém de provisões. Em todo canto,
tinha ao alcance da mão as melhores aquarelas: frutas maduras, grama, flores,
terra e pólen das mais variadas cores. A paciência e a tolerância de seu protector
pareciam não ter limites. A irmã Maria não conseguia entender porque razão o
abade, que costumava manter uma severa disciplina, permitia que o
pequeno transformasse o Ospedale num
verdadeiro chiqueiro. Antes de mandar limpar as paredes, o abade ficava
extasiado olhando a hedionda obra do seu protegido, como se contemplasse os
mosaicos da cúpula do baptistério. Um pouco para que a irmã Maria parasse de
cacarejar a sua indignação e terminasse lançando imprecações em português, um
pouco para alimentar a paixão de seu protegido, o certo é que o padre Verani
levou para o pequeno um punhado de pedaços de carvão, umas sanguinas, um lápis
trazido de Veneza e uma pilha de papéis rejeitados pela imprensa do
arcebispado. Foi um verdadeiro achado. O lápis se acomodava à sua mão como se
fosse parte de sua anatomia. Pietro aprendeu a desenhar a si mesmo antes de
aprender a dizer o próprio nome. E, a partir do momento em que recebeu aqueles
presentes, o menino limitou-se à superfície das folhas, mesmo que nunca tivesse
abandonado o seu afã de experimentar elementos menos convencionais. Os avanços
eram surpreendentes, mas as habilidades precoces do menino iam-se encontrar com
um muro difícil de superar.
As
zangas da irmã Maria com Pietro eram tão fortes como efémeras, em contraste com
o carinho incondicional que lhe dava. E, certamente, os seus pequenos momentos
de ira não eram nada em comparação com a silenciosa fúria que o menino
despertava naquele que haveria de se converter numa verdadeira ameaça para a sua
feliz permanência no orfanato: o prior Severo Setimio. Severo Setimio era quem
supervisionava todos os estabelecimentos pertencentes ao arcebispado. A cada
semana, sem que ninguém pudesse prever o dia e a hora, fazia uma visita
surpresa ao Ospedale. Com as mãos
cruzadas às costas, o queixo saliente e altivo, percorria os corredores,
entrava nos claustros e revistava com cuidado,
até debaixo das camas, para que tudo estivesse em ordem. Diante do olhar
assustado dos internos, Severo Setimio andava acompanhado pelo padre Verani,
que pedia em silêncio que nada irritasse o terrível espírito do prior. Mas as
silenciosas súplicas do padre pareciam nunca encontrar abrigo na Santíssima
Vontade: uma ruga nas cobertas, um gesto que pudesse revelar falta de respeito,
o mais imperceptível murmúrio eram motivos para que, inexoravelmente, alguma
coisa fosse apontada e condenada pelo indicador de Severo Setimio. Então
apareciam as punições sumárias e inapeláveis: os pequenos eram condenados a
ficar horas ajoelhados em grãos de milho ou, se as penas eram mais graves, o
próprio prior se encarregava de descarregar o rigor da vara nos dedos dos
jovens delinquentes». In Federico Andahazi, O Segredo dos Flamengos,
L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.
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