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Era
uma vez um menino
«(…) Depois de o cortejo fúnebre
depositar o féretro em Santa Cruz, sobe agora a ladeira até ao paço da alcáçova
com o jovem rei no meio. O povo, temeroso dos poderes da escuridão, foi-se retirando
mal o sol se escondeu por detrás do casario. Os destemidos que permaneceram, inclinam
a cabeça ao herdeiro em discreta veneração. Sancho corresponde com a mão direita
levantada. Choveu todo o caminho, está encharcado até aos ossos. Só quando se apeia,
no pátio, dá pelo desconforto do fato colado ao seu corpo magro. O movimento nunca
foi tão intenso. As portas franqueiam-se aos barões do Norte e seus vassalos,
aos cavaleiros vilãos dos concelhos que vêm apresentar condolências. Os maiores
da cúria aceitam-nas em nome do pequeno rei e mandam-no subir, para trocar as vestiduras.
Os criados acendem a lareira da sala do trono, preparam a selha para o banho, reaquecem
a ceia entretanto arrefecida. A cozinha fervilha como nos velhos tempos.
O Inverno ainda se arrasta pelos
contornos da noite numa despedida morosa e o negrume vem cobrindo os telhados húmidos
com um espesso manto de névoas. Só o aroma das panelas e do espeto conforta os nobres
de jornada tão longa. Tristeza não, a tristeza não é deles, é dos infantes. Não
esperam por Sancho para devorar a carne assada. Teresa Martins Riba de Vizela, prima
do alferes-mor e antiga ama de Sancho, faz um esgar de desprezo quando passa pelo
átrio. Quem olhará pelo pequeno rei e pelos irmãos com afecto genuíno? Sobe ao quarto
onde se encontram, para esperar o menino que em tempos amamentara. Alguém se lembrara
de os reunir a todos sob o mesmo tecto, na altura em que pusessem a coroa na cabeça
de Sancho.
Já a entrar na idade núbil, Leonor
bem sabe que o futuro é incerto. Que destino lhe darão? Afonso finge valentia
com os punhos cerrados, embora siga todos os movimentos dos barões da cúria. Fernando,
de apenas cinco anos, repete que não entende porque o castigaram e lhe roubaram
os pais. Deixava de comer naquela tarde em que procurava Sancho e lhe diziam que
ele se preparava para viajar até Santarém, para trazer o corpo do pai. Antes de
partir, o futuro rei afagava-lhe os cabelos anelados e falava-lhe baixinho: o que
tens, por que não comes? O pequeno virava para ele os olhos grandes marejados, e
de lábios esticados num amuo sentido, confessava a sua mágoa: os pais não gostavam
de nós, a mãe partiu e não me disse nada, só confessou que estava doente, agora
o pai foi embora e também não me avisou; devia gostar mais de João Afonso, quis
ir para o céu com ele...
Não entendo o que diz, queixava-se
Leonor, embrulhada numa tácita distância. Sancho calava, com o coração
apertado. Tão pouco Fernando convivera com o pai e tanto ansiava pelo seu abraço.
Só Afonso exibia aquele sorriso irónico e traduzia o desgosto do mais novo: não
sabes que os bastardos do pai também morreram?, piscava um olho, a pedir
cumplicidade. Sancho puxava-o contra a parede, de punhos cerrados, e falava-lhe
em tom de voz quase inaudível: como sabia ele dos bastardos? Disse-lho eu, não fossem
outros fazê-lo, mas para não sofrer muito, contei-lhe que ambos tinham partido.
Tremia diante do furor do irmão maior: devias ter vergonha, dizia-lhe o pequeno
rei, largando-o depois bruscamente. E afagando de novo o rosto do mais pequeno,
ali mesmo lhe contava que havia dois bastardos, sim, mas estavam ainda vivos. O
pai não fora nada ao encontro deles, tivera que partir por não aguentar as dores.
Sacode os cabelos molhados como se afastasse as lembranças, antes de empurrar a
porta. Teme mais a responsabilidade familiar do que o cenho dos barões da cúria.
Teresa insiste para que se junte aos conselheiros, mas Sancho rejeita a ideia».
In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência,
2016, ISBN 978-989-637-951-3.
Cortesia de ESdeEmergência/JDACT