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«(…) Por tudo isto, a questão da
legitimação do rei e do reino, e do seu reconhecimento, andava muito ligada aos
progressos da questão do primado, especialmente a nível diplomático. Assim, embora
o propósito mais visível das visitas de João Peculiar à cúria pontifícia pareça
ter sido quase sempre o de resolver as questões ligadas com as querelas jurisdicionais
com Toledo ou com Compostela, não se pode evitar de reparar que quase todas as suas
deslocações a Roma parecem ter obedecido como que a um padrão rítmico que se coordena
de forma bastante significativa com os progressos político-militares e territoriais
do seu rei. Em 1144, quando o pedido de vassalagem tinha sido entregue na cúria,
ele apresentou aí o pagamento correspondente do censo e recebeu a carta de
protecção para Afonso Henriques; quando, em 1148, se deslocou a Roma para justificar
a sua não obediência a Raimundo de Toledo, decerto aproveitou para reportar a conquista
de Lisboa e a restauração de Lamego e Viseu, recebendo uma confirmação pontifícia
das sufragâneas de Braga; em 1157 e em 1163 também apresentou sempre mensagens
de submissão e vassalagem por parte do rei, apesar de se ter deslocado a esses encontros
para responder sobre a sua contumácia em obedecer ao primado de Toledo.
Braga reivindicava a total independência
em relação a Toledo, a quem disputava ainda os direitos do primado, por pretender
ter direito a usar esse título, com base na anterioridade da posse desse estatuto,
que alegava ter usado desde tempos anteriores à própria restauração da diocese de
Toledo. Mas a evolução da querela demonstra à sociedade que a interferência das
esferas políticas nesta questão não deixava ao acaso o desfecho deste assunto.
Ainda em 1150, João Peculiar, na sequência de mais uma suspensão, acabara por ir
mesmo a Toledo, prestar obediência ao arcebispo dessa metrópole como a seu primaz,
por uma e única vez. O documento onde se regista este acto menciona que o rei
Afonso Henriques enviara o arcebispo português a Toledo com o seu próprio filho
primogénito, Henrique, que teria então 3 anos, e que Afonso VII, por seu turno,
tinha enviado seu filho mais novo, Fernando, de 13 anos, causa reformandi pacis
(para se acertar a paz), no que parece ser um encontro entre eclesiásticos com
uma óbvia leitura política. Mas não parece ter estado na natureza deste prelado
(ou, quem sabe, dos interesses da política portuguesa) manter tal estado de coisas,
como sugere o facto de, logo em 1155, vir a ser suspenso mais uma vez, desta
vez pelo cardeal Jacinto, legado papal à Península, por causa da sua recusa em
comparecer ao concílio provincial convocado e presidido pelo imperador Afonso VII.
Até final da sua vida, João Peculiar continuaria sempre a exercer a sua autoridade
e a exercer o seu múnus arquiepiscopal como se nada afectasse a sua legitimidade
para o fazer.
Neste
ponto, a sua actuação aproximava-se muito da de Afonso, o senhor seu rei, que também
reinou de facto, durante quase quarenta anos, exercendo a sua soberania sem limitações
e como rei de pleno direito, sem ligar ao facto de, apesar de nunca ter deixado
de lutar pela legitimação do seu poder pelo papa, apenas ter recebido o reconhecimento
pontifício que lhe permitiria afirmar a sua identidade como rei e a existência
do território como reino independente e indivisível em 1179, quando finalmente
abula
Manifestis probatum est lhe reconheceria esses direitos de iure. Apesar
de ser verdade que se pode constatar que a questão do primado da Hispânia abrandou
depois de várias bulas pontifícias através das quais Roma esvaziava o conteúdo real
da detenção da dignidade primacial pelos arcebispos de Toledo, também não deixa
de ser um facto que a questão apenas se esvaziaria de importância quando o poder
político perdeu interesse em alimentá-la». In Maria João Violante Branco, Sancho I,
O Filho do Fundador, Temas e Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN
978-972-759-978-3.
Cortesia de Bertrand/JDACT