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«(…) Muidinga vai avançando,
pisando com mil cautelas. Aquele recinto está contaminado pela morte. Seriam
precisas mil cerimónias para purificar o autocarro. Não faça essa cara, miúdo. Os falecidos ofendem- se lhes mostramos nojo.
Muidinga arruma o saco num banco. Senta-se e observa o recanto
conservado. Há tecto, assentos, encostos. O velho, impávido, já se deitou a
repousar. De olhos fechados, espreguiça a voz: sabe bem uma sombrinha assim. Não descanso desde que fugimos do campo. Não
quer apanhar sombra? Tuahir, vamos tirar esses corpos daqui. E porquê?
Cheiram-lhe mal? O miúdo não responde logo. Está virado para a janela
quebrada. O velho insiste que descanse. Desde que saíram do campo de deslocados
eles não tinham tido pausa. Muidinga permanece de costas viradas. Escuta-se
apenas o seu respirar, quase resvalando em soluço. Então, ele repete a
sussurrante súplica: que se limpe aquele refúgio. Peço-lhe, tio Tuahir. É que estou farto de viver entre mortos. O
velho apressa-se a emendar: não sou
seu tio! E ameaça: o moço que não
abuse das familiaridades. Mas aquele tratamento é só a maneira da tradição,
argumenta Muidinga.
Em você
não gosto. Não lhe chamo nunca mais. E me diga: quer encontrar os seus pais
porquê? Já expliquei tantas vezes. Não consigo entender. Vou-lhe contar uma
coisa: os seus pais não lhe vão querer ver nem vivo. Porquê? Em tempos de
guerra, filhos são um peso que atrapalha. Saem a enterrar os cadáveres. Não vão
longe. Abrem uma única campa para poupar esforço. No caminho do regresso
encontram mais um corpo. Jazia junto à berma, virado de costas. Não estava
queimado. Tinha sido morto a tiro. A camisa estava empapada em sangue, nem se
notava a cor original. Junto dele estava uma mala, fechada, intacta. Tuahir
sacode o morto com o pé. Revista-lhe os bolsos, em vão: alguém já os tinha
vazado. Eh pá, este gajo não cheira.
Atacaram o machimbombo há pouco tempo. O miúdo
estremece. A tragédia, afinal, é mais recente do que ele pensava. Os espíritos dos
falecidos ainda por ali pairavam. Mas Tuahir parece alheio à vizinhança.
Enterram o último cadáver. O rosto dele nunca chega a ser visto: arrastaram-no
assim mesmo, os dentes charruaram a terra. Depois de fecharem o buraco, o velho
puxa a mala para dentro do autocarro. Tuahir tenta abrir o achado, não é capaz.
Convoca a ajuda de Muidinga: abre,
vamos ver o que está dentro. Forçam o fecho, apressados. No
interior da mala estão roupas, uma caixa com comidas. Por cima de tudo estão
espalhados cadernos escolares, gatafunhados com letras incertas. O velho carrega
a caixa com mantimentos. Muidinga inspecciona os papéis. Veja, Tuahir. São cartas. Quero saber é das
comidas. O miúdo remexe no resto. As mãos curiosas viajam pelos cantos
da mala. O velho chama a atenção: ele que deixasse tudo como estava, fechasse a
tampa. Tira só essa papelada. Serve
para acendermos a fogueira. O
jovem retira os caderninhos. Guarda-os por baixo do seu banco. Não parece
pretender sacrificar aqueles papéis para iniciar o fogo. Fica sentado, alheio.
No enquanto, lá fora, tudo vai ficando noite. Reina um negro silvestre, cego.
Muidinga olha o escuro e estremece. É um desses negros que nem os corvos comem.
Parece todas as sombras desceram à terra. O medo passeia os seus chifres no
peito do menino que se deita, enroscado como um congolote. O machimbombo rende-se
à quietude, tudo é silêncio taciturno. Mais tarde, começa-se a escutar um
pranto, num fio quase inaudível. É Muidinga que chora. O velho levanta-se e ralha:
pára de chorar! É que me dói uma
tristeza... Chorando assim você vai chamar os espíritos. Ou se cala ou lhe
rebento a tristeza à pancada. Nós nunca mais vamos sair daqui. Vamos, com certeza. Qualquer coisa vai acontecer
qualquer dia. E essa guerra vai acabar. A estrada já se vai encher de gente,
camiões. Como no tempo de antigamente. Mais sereno, o velho passa um braço
sobre os ombros trementes do rapaz e lhe pergunta: tens medo da noite? Muidinga acena afirmativamente. Então vai acender uma fogueira lá fora. O
miúdo levanta-se e escolhe entre os papéis, receando rasgar uma folha escrita.
Acaba por arrancar a capa de um dos cadernos. Para fazer fogo usa esse papel.
Depois senta-se ao lado da fogueira, ajeita os cadernos e começa a ler.
Balbucia letra a letra, percorrendo o lento desenho de cada uma. Sorri com a
satisfação de uma conquista. Vai-se habituando, ganhando despacho. Que estás a fazer, rapaz? Estou a ler. É verdade,
já me esquecia, você é capaz de ler. Então leia em voz alta que é para me adormecer».
In Mia Couto, Terra Sonâmbula, Editorial Caminho, Lisboa, 1992, ISBN
972-21-0790-9.
Cortesia de Caminho/JDACT