«(…) Se nos recordarmos da afirmação tão firme por si feita um ano
atrás, precisamente no dia 11 de Novembro de 1932 e no semanário Liberdade, de que nos momentos então
vividos era a hora de falar claro e de
cada um escolher a sua posição, sem esforço se verá que ele não só havia escolhido
há muito o seu lugar na contenda, como também não perdera tempo a passar das
palavras à acção. Certo de que a liberdade, a ciência e a cultura não
sobrevivem nem se desenvolvem sob o império da guerra, corajosamente tomou o
seu posto na barricada. O Globo surgiu num dos momentos mais dramáticos
da História europeia e do nosso país, quando Hitler já chegara ao poder e tinha
encenado a grande farsa do incêndio do Reichstag, acelerando a descida aos
infernos, de que nos fala Bento Caraça. Na mesma altura, em
Portugal, o fascismo salazarista consolidava o seu domínio, plebiscitava fraudulentamente
uma nova constituição política e intensificava a repressão sobre o movimento
operário e sindical, que a breve trecho iria destroçar com a promulgação do
Estatuto do Trabalho Nacional e a fascização dos sindicatos.
É conhecido o texto publicado na última página do primeiro número do
jornal, a sua declaração de princípios, a nosso ver saída da pena de Bento
Caraça. O que até agora se ignorava é o texto intitulado Linha
Geral, encontrado no espólio. Foi certamente o documento original
definidor da linha de orientação aprovada pelo colectivo do jornal. Por razões
que uma simples leitura torna óbvias, jamais foi divulgado, muito embora a
declaração de princípios que foi publicada se tenha inspirado no texto Linha
Geral, depois de o expurgar, claro está, das inconveniências que
a censura veria com maus olhos e de lhe ter aprimorado a forma. Ao evocar-se a
participação de Bento Caraça no amplo movimento internacional contra a guerra e
o fascismo na Europa, não é possível deixar no esquecimento a conferência A
Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo, um
dos marcos mais significativos do seu envolvimento nessa luta. Proferida em
Maio de 1933, na Universidade Popular
Portuguesa, a convite da novel União Cultural Mocidade Livre, a conferência
antecedeu em alguns meses o lançamento do Globo, sendo proferida perante
uma assistência predominantemente juvenil, perturbada mas ansiosa por
compreender o curso inquietante dos acontecimentos políticos, económicos e
sociais que sacudiam o mundo dos seus dias. Perante esses jovens, numa análise
clara e objectiva, Bento Caraça traçou as linhas gerais da evolução do mundo
ocidental nos últimos tempos, a matriz dos problemas e das inquietações então
vividas, sublinhando que o que o mundo
for amanhã, é o esforço de todos nós que o determinará. Há que resolver os
problemas que estão postos à nossa geração. Para tal, era
indispensável, antes de tudo, conhecer quais
são esses problemas, quais as soluções que importa dar-lhes, saber donde vimos, onde estamos, para
onde vamos. E mais adiante alertou: O
que estamos actualmente vivendo e sofrendo não é apenas uma borbulhagem fugaz,
destinada a passar como tantas coisas passam, sem deixar sinal; é, muito pelo
contrário, uma época de transição, uma ponte de passagem entre aquilo que
desaparece e o que vai surgir. E nessa ponte de passagem chocam-se todas as
correntes, coexistem todas as contradições, fazendo dela aparentemente uma
feira de desvarios e, na realidade, um formidável laboratório de vida.
A conferência, uma análise invulgarmente lúcida sobre os dias tormentosos
da década de 30, representou para os
jovens que então a escutaram uma mensagem de estímulo e de esperança. E não é
muita ousadia admitir que essa mensagem permanece viva e actual, em muitas das
suas páginas». In Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça, Semeador de Cultura e
Cidadania. Inéditos e dispersos, Campo das Letras Editores, Porto, colecção
Cultura Portuguesa, 2007, ISBN 978-989-625-128-4.
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