Introdução
«Nos estudos de história
da família e do casamento no Ocidente cristão tem havido, nas últimas décadas,
momentos fulcrais que representam tentativas, não só de conhecimento, mas
também de compreensão, quer das formas de vida, quer da organização social das
sociedades do passado. Não pretendendo fazer uma síntese, ou mesmo o estado
da questão, dos trabalhos sobre a família e o casamento na Península Ibérica
desde os fins da Idade Média até ao século XVII inclusivamente, procuraremos
estudar o casamento, mais o estado
que a instituição, privilegiando a construção da imagem que dele foi sendo
feita ou refeita, nesse período, acentuando algumas dimensões que a literatura
moral, didáctica e religiosa dessa época permite captar. Naturalmente,
compreendê-lo na sua inserção num complexo de textos doutrinários, culturais e
sociais e, consequentemente, de condicionantes e funções que lhe estavam na
base e o ajudaram a definir, mas preocupar-nos-á, sobretudo, explorar os modos
de representação do casamento e da vida conjugal, consequentemente, também da família,
que visavam determinar, reforçar, orientar ou modificar comportamentos morais e
sociais desses séculos.
Mesmo sem esquecer os
problemas que, sobretudo para este período, se relacionam com a definição de
família, de grupo social e, consequentemente, de casamento, e muitos deles
continuam sem resposta definitiva ou clara, pensamos ser importante desenvolver
estudos que permitam uma melhor compreensão e, logo, um mais profundo
conhecimento de dimensões como a afectividade, o amor conjugal, a vida
religiosa e espiritual das famílias
e, em especial, dos casados, dimensões essas que permitirão um olhar diferente
sobre a vida matrimonial e familiar desse período histórico. Além disso, se
algumas questões como a da intervenção da família, dos pais ou seus
substitutos, nos casamentos dos jovens, não apenas dos filhos, mas também
dos sobrinhos, dos irmãos, dos primos..., a idade ao casamento, as incidências
do celibato, masculino e feminino, a endogamia, as segundas núpcias, as
implicações dos casamentos clandestinos, os problemas jurídicos e culturais
ligados ao concubinato e à bigamia, ou poligamia, a viuvez e alguns dos seus
problemas, entre outras, têm, desde os mais variados pontos de vista,
constituído objectos de investigação e estudo, salientando a sua importância na
história social, têm também, até pelas dúvidas que persistem, pelas lacunas
difíceis ou impossíveis de resolver, deixado em aberto questões que dizem
respeito, sobretudo, à história cultural do casamento.
Deste modo, se os
casamentos dinásticos foram, durante muito tempo, o objecto principal de
atenção e estudo, sobretudo pela sua função política, outras dimensões da união
matrimonial, que não eram apenas as dos interesses aristocráticos, têm vindo a
ser questionadas. Lembremos as contribuições não apenas da história do direito,
da história económica e social mas, principalmente, as interrogações e métodos
da antropologia, da sociologia, de algumas correntes da história literária e,
sobretudo, da história cultural, a par dos estudos sobre as mulheres, que
vieram colocar questões novas, permitindo olhar o casamento e a família desde
pontos de vista diversos e multifacetados. Naturalmente, os aprofundamentos
vários da história religiosa, nomeadamente o seu progressivo interesse pela
espiritualidade dos leigos, vieram sugerir novas interrogações e novas
perspectivas, quer sobre a doutrina quer também sobre as práticas do casamento
e da vida conjugal, nomeadamente sobre a inserção dos casados na vida religiosa
e espiritual desses séculos, aspecto tão pouco estudado quão importante para um
conhecimento mais profundo, que rompa a barreira da legislação, do casamento. A
instituição matrimonial foi, durante muitos séculos, e dada a sua qualidade de
sacramento, uma das poucas brechas através da qual a espiritualidade cristã foi
penetrando, ainda que de um modo pouco sistemático, no mundo dos leigos para os
fazer participar dos seus objectivos, para difundir as suas mensagens, para
mudar e moldar comportamentos... Estas diferentes contribuições, ou melhor, as
questões levantadas por umas e por outras são particularmente importantes nas re-leituras dos textos e fontes
históricas. As características gerais do casamento cristão, a
indissolubilidade e a monogamia, não são, em si, elementos suficientemente definidores
das variadíssimas práticas e representações que as diversas fontes deixam
entrever, sobretudo numa área geográfica tão vasta como a do Ocidente cristão.
Além disso, a relevância
dos aspectos relacionados com as normas jurídicas, com a concepção de linhagem,
as uniões de famílias, a importância e administração do dote, a condição social
das mulheres, entre outros que têm sido evidenciados por importantes estudos mas
que, dada a sua importância a vários níveis, teremos presentes ou evocaremos
sempre que tal se justifique, não pode ocultar outras dimensões, outros
aspectos, talvez menos evidentes ou imediatamente referenciáveis, ou não
quantificáveis, mas igualmente importantes para a compreensão da instituição e da
vida matrimonial». In Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento.
Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.
Cortesia de ICP/FLFP/JDACT