sábado, 14 de dezembro de 2013

Nelson Mandela. Uma Lição de Vida. Jack Lang. «Há demasiado tempo que esperamos pela liberdade. Não podemos esperar mais. E tempo de intensificar a luta em todas as frentes. Esmorecer na nossa combatividade seria uma falta que as gerações futuras não iriam perdoar-nos»

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Discurso perante a multidão na cidade do Cabo, no dia da sua Libertação
Dia 11 de Fevereiro de 1990
«Amigos, camaradas e compatriotas sul-africanos. Saúdo-vos em nome da paz, da democracia e da liberdade para todos! Estou aqui, perante vós, não como um profeta mas como um humilde servo vosso, do povo. Os vossos sacrifícios incansáveis e heróicos tornaram possível a minha presença hoje aqui. Deposito, pois, os anos de vida que me restam nas vossas mãos. Neste dia da minha libertação, quero também exprimir a minha sincera e mais viva gratidão aos meus milhões de compatriotas e a todos quantos, nos quatro cantos do mundo, nunca se cansaram de fazer campanha pela minha libertação.
[…]

Hoje, a maioria dos sul-africanos, negros e brancos, reconhece que o apartheid não tem futuro. Temos de acabar com ele, pela nossa acção conjunta e decisiva, para construir a paz e a segurança em todo o país. A resistência colectiva e as outras acções empreendidas pela nossa organização e pelo nosso povo não podem deixar de conduzir à instauração da democracia. A destruição causada pelo apartheid no nosso subcontinente é incalculável. Para muitos, deixou de existir estrutura familiar. Há milhões sem casa e sem emprego. A nossa economia está arruinada e o nosso povo mergulhado no conflito político. O nosso recurso à luta armada em 1960, com a formação do braço armado do ANC, Umkhonto we Sizwe, era uma acção meramente defensiva contra a violência do apartheid. Os factores que levaram à luta armada persistem hoje. Não nos resta outra alternativa senão continuar com ela. Resta-nos esperar um clima favorável às negociações para que a luta armada não seja por muito mais tempo uma necessidade.
Sou um membro leal e disciplinado do Congresso Nacional Africano. Estou por isso plenamente de acordo com todos os seus objectivos, as suas estratégias e as suas tácticas. Unir os habitantes do nosso país é uma tarefa tão importante e necessária hoje como sempre foi. Nenhum dirigente, qualquer que ele seja, pode levá-la a bom porto sozinho. Nós, os líderes políticos, temos de submeter os nossos pontos de vista à nossa organização e deixar que seja ela a decidir de acordo com o processo democrático que é o seu. É meu dever, a este propósito, sublinhar que um dirigente do movimento é uma pessoa eleita democraticamente em congresso nacional. É um princípio que tem de ser observado, sem lugar à mínima derrogação. Hoje, desejo comunicar-vos que as minhas conversações com o governo se destinaram a normalizar a situação política no país. Ainda não começámos a discutir as reivindicações fundamentais da nossa luta. Quero também salientar que eu, pessoalmente, em nenhum momento encetei negociações quanto ao futuro do nosso país, a não ser para insistir num encontro entre o ANC e o governo. O Sr. De Klerk foi mais longe do que qualquer outro presidente nacionalista, ao tomar medidas concretas no sentido de normalizar a situação. Porém, outras diligências, como as que ficaram esboçadas na Declaração de Harare, terão de ser desenvolvidas antes de podermos negociar os direitos fundamentais que o nosso povo exige. Aproveito esta oportunidade para reiterar a nossa reivindicação, entre outras, do levantamento imediato do estado de emergência e da libertação de todos os presos políticos não apenas de alguns. Só uma situação normalizada, que garanta uma livre actividade política, pode permitir-nos consultar o nosso povo para dele obter um mandato.
O povo tem de ser consultado para decidir quem vai negociar e quais são as negociações a fazer. Nenhuma negociação deve ter lugar sem o parecer dos nossos concidadãos. O futuro do nosso país só pode ser decidido por um órgão eleito democraticamente numa base não racial. As negociações, que incidirão sobre o desmantelamento do apartheid, terão de tomar em consideração o desejo irreprimível do nosso povo de uma África do Sul democrática, não racial e unitária. É preciso acabar com o monopólio branco do poder político e preparar uma reestruturação dos nossos sistemas político e económico, para se poder assegurar que as desigualdades devidas ao apartheid sejam eliminadas e a nossa sociedade seja perfeitamente democratizada. E bom que se diga que o Sr. De Klerk é um homem íntegro, que tem uma consciência apurada dos perigos a que se exporia uma personalidade pública que não honrasse os seus compromissos. Dito isso, a nossa organização tem o dever de definir a sua linha de conduta e a sua estratégia em função da dura realidade com que estamos confrontados. E esta realidade traduz-se no facto de continuarmos a sofrer os efeitos da política posta em prática pelo governo nacionalista. A nossa luta está num momento crucial da sua história. Apelamos ao nosso povo para que se mobilize no sentido de tornar rápido e ininterrupto o caminho que conduz à democracia. Há demasiado tempo que esperamos pela liberdade. Não podemos esperar mais. E tempo de intensificar a luta em todas as frentes. Esmorecer na nossa combatividade seria uma falta que as gerações futuras não iriam perdoar-nos. A liberdade que se desenha no horizonte tem de nos dar ânimo para redobrarmos os nossos esforços. Só uma acção maciça e disciplinada pode garantir-nos a vitória. Apelamos aos nossos compatriotas brancos para que se juntem a nós na construção de uma nova África do Sul, o movimento pela liberdade pertence a uma família política em que eles também têm lugar. Apelamos à comunidade internacional para que prossiga a sua campanha para isolar o regime do apartheid. Levantar agora as sanções seria correr o risco de fazer abortar o processo que há-de levar à erradicação total do apartheid.
A nossa marcha para a liberdade é irreversível. Não podemos permitir que o medo se atravesse no nosso caminho. O sufrágio universal, assente na participação comum de todos os eleitores numa África do Sul unificada, democrática e não racial, é a única via que leva à paz e à harmonia racial. Para concluir, gostaria de repetir as palavras que já pronunciei no decurso do meu julgamento, em 1964. São tão verdadeiras hoje como eram na época:
  • Tenho lutado contra a dominação branca e contra a dominação negra. Tenho acalentado o ideal de uma sociedade democrática e livre em que todas as pessoas possam viver juntas, em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para cuja concretização espero viver. Mas se for necessário, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.
In Jack Lang, Leçon de vie pour l’avenir, Perrin 2004, Nelson Mandela, Uma Lição de Vida, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2005, ISBN 978-972-53-0275-0.

Cortesia de Bizâncio/JDACT