quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «Uns dias antes de partirmos para a Índia fui recebida por Olivier Messien, que, me aconselhou: ‘Primeiro comece por aprender o sânscrito e alguma coisa da filosofia indiana; a música virá depois. Foi assim que fiz’»

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«(…) Chegámos, finalmente, a Bombaim (actual Mumbai) com pouco dinheiro, sem trabalho em vista, mas cheios de sonhos. Que grande maluquice, diziam-nos. Por que não concorres a um lugar em Goa? Lica só sorria e nada dizia. Como seria possível pedir a um governo estrangeiro um lugar para ele no seu próprio país?! Não te aflijas, vamos sobreviver a isto, dizia ele para me acalmar. Porém, eu própria tinha as minhas dúvidas e a esperança no futuro começava a enfraquecer. Mas, sempre que houvesse uma pequena crise, Lica faria por me confortar, entoando baixinho os versos de Gitah: Tens só o direito ao trabalho. Mas nunca ao fruto desse trabalho. Nos nossos planos de ir para a Índia ou onde iríamos viver quando lá chegássemos tínhamos incluído Paris como uma pausa preliminar no nosso itinerário. Lica queria encontrar-se primeiro com Vijayalaxmi Pandit, embaixador da Índia nas Nações Unidas, que nessa altura operava no Palais de Chaillot, em Paris. Tinha até preparado antecipadamente um detalhado relatório sobre os prisioneiros goeses que se encontravam no Forte de Peniche e insistia em apresentar-lhe este relatório. Pela minha parte, também tinha um grande desejo de visitar o Conservatório de Paris e, se possível, encontrar-me com Olivier Messien, um dos grande compositores contemporâneos da França, que tinha sido grandemente influenciado pela música e filosofia indianas. No segundo dia da nossa jornada chegámos, finalmente, a Paris. Fazia um frio de rachar e os bagageiros estavam em greve, coisa completamente desconhecida para mim porque as greves em Portugal tinham sido proibidas com o advento da ditadura. Com os dedos tolhidos pelo frio mal podia segurar a minha maleta. Quando pusemos a nossa bagagem fora da estação, o meu grande entusiasmo por ter finalmente chegado à cidade-luz já tinha sofrido um temporário set back.
As nossas modestas acomodações tinham sido organizadas por Trimbak, um primo de Lica que estava a trabalhar em Paris. Ficámos num pequeno hotel na Rue de la Victoire, ao Chaussée d'Antin, muito perto da Opera e do Caffé de la Paix, que veio a ser o nosso ponto de encontro preferido. Foi através de Trimbak que viemos a conhecer muitas pessoas de enorme interesse para nós e que nos fizeram sentir o pulso intelectual da vida parisiense. Entre os amigos de Trimbak havia a família Duparc, em cuja residência nos reunimos várias vezes. Madame Duparc era escritora, o marido escultor e o filho organista no último ano do conservatório. Foi nos estúdios da casa Duparc que nos encontrámos com  Bragança Cunha, irmão de Tristão, o nosso amigo recluso no Forte de Peniche. Tinha deixado a Índia ainda jovem, como estudante, e mais tarde casara com uma senhora russa e tinha ido viver para aquele país. Durante esse tempo trabalhara com Lenine. O Bragança Cunha era um homem alto e de longas barbas brancas, que me faziam lembrar a figura de Tolstoi. Adorei estas tertúlias, onde debatíamos diversos problemas da actualidade, bebericando, em pequenas taças elegantes, o café de chicória que a senhora Duparc deixava preparado no samovar sobre a salamandra. Ocasionalmente, a senhora Duparc trazia uma bisnaga de leite condensado que lhe era enviada da Suíça. A guerra tinha terminado três anos antes, mas o leite era ainda muito escasso em Paris. No hotel onde estávamos o nosso pequeno-almoço constava sempre de uma chávena de café de cevada, sem leite, e de um croissant... mais nada.

O relatório sobre os prisioneiros de Peniche foi, finalmente, entregue e ainda pudemos assistir a algumas conferências no Palais de Chaillot. Uns dias antes de partirmos para a Índia fui recebida por Olivier Messien, que, com gentileza e sensatez, me aconselhou: Primeiro comece por aprender o sânscrito e alguma coisa da filosofia indiana; a música virá depois. Foi assim que fiz. No final de Novembro de 1948 tivemos de deixar os nossos novos amigos e aquela maravilhosa vida parisiense. Mas lembrar-me-ei sempre dos concertos, das visitas ao café Deux Magots, onde Sartre ia, e, acima de tudo, da amizade que as pessoas nos ofereceram». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.

Cortesia de E. Tágide/JDACT