«(…) Chegámos, finalmente, a Bombaim (actual Mumbai) com pouco
dinheiro, sem trabalho em vista, mas cheios de sonhos. Que grande maluquice, diziam-nos. Por que não concorres a um lugar em Goa? Lica
só sorria e nada dizia. Como seria possível pedir a um governo estrangeiro
um lugar para ele no seu próprio
país?! Não te aflijas, vamos sobreviver a isto, dizia ele para me
acalmar. Porém, eu própria tinha as minhas dúvidas e a esperança no futuro
começava a enfraquecer. Mas, sempre que houvesse uma pequena crise, Lica faria
por me confortar, entoando baixinho os versos de Gitah: Tens só o direito ao trabalho. Mas nunca ao fruto desse trabalho.
Nos nossos planos de ir para a Índia ou onde iríamos viver quando lá
chegássemos tínhamos incluído Paris como uma pausa preliminar no nosso itinerário.
Lica
queria encontrar-se primeiro com Vijayalaxmi Pandit, embaixador da Índia nas
Nações Unidas, que nessa altura operava no Palais de Chaillot, em Paris. Tinha
até preparado antecipadamente um detalhado relatório sobre os prisioneiros goeses
que se encontravam no Forte de Peniche e insistia em apresentar-lhe este
relatório. Pela minha parte, também tinha um grande desejo de visitar o
Conservatório de Paris e, se possível, encontrar-me com Olivier Messien, um dos
grande compositores contemporâneos da França, que tinha sido grandemente
influenciado pela música e filosofia indianas. No segundo dia da nossa jornada
chegámos, finalmente, a Paris. Fazia um frio de rachar e os bagageiros estavam
em greve, coisa completamente desconhecida para mim porque as greves em
Portugal tinham sido proibidas com o advento da ditadura. Com os dedos tolhidos
pelo frio mal podia segurar a minha maleta. Quando pusemos a nossa bagagem fora
da estação, o meu grande entusiasmo por ter finalmente chegado à cidade-luz já tinha
sofrido um temporário set back.
As nossas modestas acomodações tinham sido organizadas por Trimbak, um
primo de Lica que estava a trabalhar em Paris. Ficámos num pequeno hotel
na Rue de la Victoire, ao Chaussée d'Antin, muito perto da Opera e do Caffé de
la Paix, que veio a ser o nosso ponto de encontro preferido. Foi através de
Trimbak que viemos a conhecer muitas pessoas de enorme interesse para nós e que
nos fizeram sentir o pulso intelectual da vida parisiense. Entre os amigos de
Trimbak havia a família Duparc, em cuja residência nos reunimos várias vezes.
Madame Duparc era escritora, o marido escultor e o filho organista no último
ano do conservatório. Foi nos estúdios da casa Duparc que nos encontrámos com Bragança Cunha, irmão de Tristão, o nosso
amigo recluso no Forte de Peniche. Tinha deixado a Índia ainda jovem, como
estudante, e mais tarde casara com uma senhora russa e tinha ido viver para aquele
país. Durante esse tempo trabalhara com Lenine. O Bragança Cunha era um homem
alto e de longas barbas brancas, que me faziam lembrar a figura de Tolstoi.
Adorei estas tertúlias, onde debatíamos diversos problemas da actualidade,
bebericando, em pequenas taças elegantes, o café de chicória que a senhora
Duparc deixava preparado no samovar
sobre a salamandra. Ocasionalmente, a senhora Duparc trazia uma bisnaga de
leite condensado que lhe era enviada da Suíça. A guerra tinha terminado três
anos antes, mas o leite era ainda muito escasso em Paris. No hotel onde
estávamos o nosso pequeno-almoço constava sempre de uma chávena de café de
cevada, sem leite, e de um croissant...
mais nada.
O relatório sobre os prisioneiros de Peniche foi, finalmente, entregue
e ainda pudemos assistir a algumas conferências no Palais de Chaillot.
Uns dias antes de partirmos para a Índia fui recebida por Olivier Messien, que,
com gentileza e sensatez, me aconselhou: Primeiro
comece por aprender o sânscrito e alguma coisa da filosofia indiana; a música virá
depois. Foi assim que fiz. No final de Novembro de 1948 tivemos de deixar os nossos novos amigos e aquela maravilhosa
vida parisiense. Mas lembrar-me-ei sempre dos concertos, das visitas ao café
Deux Magots, onde Sartre ia, e, acima de tudo, da amizade que as pessoas
nos ofereceram». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961,
Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
Cortesia de E. Tágide/JDACT