Barcelona
«(…) Camposines ficou a ver como se afastavam. O rapaz transportava
Guils às costas, como se fosse uma catga leve e Abraão, a seu lado,
indicava-lhe o caminho levando a pequena maleta, Viu-os dirigir-se, quase
invisíveis por entre a multidão, para a esquerda, como se o velho judeu
procurasse o caminho mais curto para chegar ao Call, a judiaria de
Barcelona. Não arredou pé até, perdê-los de vista. Os judeus que integravam as
aljamas estavam habituados a viver dentro das cidades onde, por disposição do
papado, tinham bairros especiais que na Catalunha se chamaram calls.
Naquele espaço viviam em comunidade, possuíam a sua sinagoga que era ponto de
reunião e ao mesmo tempo escola, o seu próprio talho, forno, banhos e tudo
quanto lhes era necessário. Eram propriedade real e por essa razão não estavam
sujeitos ao capricho dos nobres, mas apenas às ordens do rei, Era ao próprio
monarca que pagavam os tributos e era este que se encarregava de protege-los,
apesar desta protecção não sair nada barata. Aos impostos era preciso somar os
constantes empréstimos à coroa, sempre tão necessitada de dinheiro e de
aumentar as finanças do tesouro real. Mas a comunidade judia organizava-se para
fazer face aos pagamentos e esta era uma das funções práticas do Call,
ter tudo pronto para a ocasião em que aparecia o Tesoureiro Real. Em
compensação, o bairro judeu e os seus habitantes estavam sob a protecção do rei
em relação aos desmandos da nobreza e às inesperadas revoltas populares contra
eles.
O IV Concílio de Latrão, por volta de 1215, estabeleceu uma disposição pela qual todos os judeus deviam
usar uma marca física que os diferenciasse dos cristãos, e determinou que o
motivo desta distinção era evitar qualquer alegação de ignorância no caso de
relações entre judeus e cristãos. Na Catalunha, significou a imposição de uma
rodela de pano, amarelo e vermelho, que deviam usar cosido no vestuário, tanto
homens como mulheres, à frente, no peito. A
mistura de raças era uma proibição absoluta. Abraão caminhava depressa
em direcção à segurança do seu bairro. Dirigira-se para as duas torres redondas
do Portal de Regomir sem entrar na cidade velha, dando uma volta pela
caminho de ronda exterior que circundava a muralha romana e seguindo-o até
chegar a Castell Nou, que guardava o lado sul da cidade e era, ao mesmo
tempo, porta de entrada para o bairro de Call. Pensava nos problemas que lhe
traria o que estava a fazer, e não só com os cristãos, mas também com a sua
própria comunidade sempre temerosa de infringir qualquer lei. Mas havia tomado
uma decisão e a sua condição de médico não lhe permitia diferenças, nem de raça
nem de religião. Para um doente, a única coisa importante é a sua doença e
poder dispor de alguém com capacidade para o aliviar. Se tudo aquilo viesse a
ter consequências, pensaria nisso mais tarde, depois de tratar de Guils. Mas
não deixava de sentir-se perturbado e inquieto, se Guils morresse em sua casa ia
ter de explicar o que fazia o corpo de um cristão no seio da comunidade
judaica, uma coisa nada fácil de justificar.
Fez um esforço para deixar de pensar nas consequências, enquanto ia
caminhando, quase correndo atrás do moço. Devia lembrar-se do seu amigo Nahmánides,
esse não teria hesitado nem um momento, agiria segundo as sua consciência e não
segundo o medo. O moço de fretes deteve-se diante da mole do Castell Nou.
Não pensava dar nem mais um passo e muito menos entrar no bairro judeu, aquele
trabalho podia ser muitíssimo especial e como tal se fazia pagar, mas ninguém
lhe tinha dito que era preciso entrar na judiaria. Não fizera perguntas por
respeito pelo patrão, mas não pensava dar nem mais um passo e assim o fez saber
ao velho judeu. Abraão não respondeu, tinha avistado o seu amigo Moshe, dono do
talho e vizinho seu. Chamou-o discretamente e pediu-lhe que o ajudasse. - São
só uns metros, Moshe, sozinho não consigo. Ajuda-me, por favor. - É incrível,
Abraão! Desapareces durante mais de um ano sem mandar um simples recado, uma
nota a dizer que estás bem, que vens a caminho. Sei lá, uma coisa qualquer! E
de repente, apareces carregado com um cristão moribundo. Enlouqueceste?! O homem do talho estava aborrecido, apreciava
muito Abraão, era um dos seus amigos e devia-lhe muitos favores, mas pelos
vistos tinha uma maneira muito perigosa de cobrá-los, e os tempos não estavam
de molde a correr riscos inúteis. Acedeu em ajudá-lo a contragosto, expressando
o seu desacordo total e expondo todos os argumentos que lhe passaram pela
cabeça, e foram muitos, para que o médico desistisse dos seus propósitos. -
Tens toda a razão do mundo - respondeu Abraão, enquanto segurava Guils com as
forças que lhe restavam, os teus argumentos são todos acertados, mas trata-se
de um homem doente, Moshe, e eu sou médico, a doença não tem religião nem raça,
tens de compreender isso». In Núria Masot, A Sombra do Templário,
colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
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