A Mesa
«(…) Embora escasseiem
os dados, sabemos que grande número de regras de boa conduta à mesa vigoravam
no Portugal medievo. Já atrás tomámos contacto com algumas delas. Também no
serviço havia normas. O cozinheiro
levante as colheres, dizia a regra cisterciense, primeiramente à parte direita,
começando no prior; despois à parte sestra, começando junto com o prior.
Estamos em crer que a disciplina conventual, estendida até aos pormenores mais
ínfimos das regras de boa conduta à mesa, influiu muito na fixação de um código
social de comportamento. Mas só nos fins do século XIV ou princípios do XV se
começaram a estabelecer regras de colocação de lugares. Ainda por 1386, ao encontrarem-se o rei João I e
o duque de Lancaster, ali se desarmaram e assentaram-se a comer ambos de uma
parte, sem curarem de parte direita nem esquerda, cá inda então não era em uso,
e assim os que vinham com o duque. Os monarcas preocupavam-se, às vezes, em
refrear o excesso de luxo que os nobres e os ricos ostentavam. Essa preocupação
surgia, quase sempre, em períodos de crise, ou que a imediatamente precediam,
quando a sumptuária mais se fazia notar. Em certos casos, o desejo de refrear
excessos alargava-se à própria alimentação. Foi o que sucedeu no Portugal de 1340. O rei e seus conselheiros consideraram
que eram feitas maiores despesas que as que deviam fazer em comer... Daí
saiu uma pragmática que estabelecia um certo número de regras, moderadas.
Dividindo a população que importava considerar em ricos-homens, filhos d'algo e
cidadãos, proibia aos primeiros o uso de mais de três pratos de carne ao jantar
e de dois, à ceia; aos segundos e terceiros, o uso de mais de dois pratos, ao
jantar, e de um, à ceia.
Podiam, é certo, comer todo o peixe, marisco, caça, criação
e lacticínios que quisessem, desde que o houvessem por serviço ou por venação. A
concluir este capítulo, vejamos a descrição de dois banquetes festivos, que
Garcia de Resende inclui na sua Crónica de EI-Rei D. João II, ao narrar
o casamento do príncipe Afonso com D. Isabel, filha dos reis Católicos.
Logo à terça-feira à
noite houve banquete de ceia na sala da madeira, em que El-Rei e a Rainha, e o
Príncipe e a Princesa comeram, e com eles o Senhor D. Jorge, e Rodrigo de Ilhoa,
embaixador, todos em uma grande mes, com muito grandes dorséis de brocado, que
tomavam toda a sala através, e na primeira mesa da mão direita comia o marquês
de Vila Real com as senhoras donas e damas, e na primeira da mão esquerda o
arcebispo de Braga, e o bispo de Évora, e de uma parte, e da outra, assim homens
como mulheres. E a mesa de El-Rei com todo-los oficiais vestidos de brocados, e
servida por moços fidalgos que serviam de tochas e bacios, ricamente vestidos.
E as outras mesas todas com trinchantes e oficiais vestidos de ricas sedas e
brocados e mui galantes, e assim os moços da câmara ordenados a cada mesa,
todos vestidos de veludo preto. No qual banquete houve infinitas e diversas
iguarias e manjares, e singular concerto e abastança e muitas e assignadas
cerimónias. E quando levaram à mesa de El-Rei as iguarias principais era a primeira
e derradeira, e de beber a ele e à Rainha, e ao Príncipe e Princesa, iam sempre
diante, dois e dois, muitos porteiros de maça, reis de armas, arautos e passavantes,
os porteiros-mores, quatro mestres-salas, o veador, e os veadores da fazenda, e
detrás de todos o mordomo-mor, e todos iam com os barretes na mão até o
estrado, onde faziam suas grandes mesuras, e os veadores da fazenda iam com os
barretes na cabeça até o meio da sala, e do meio por diante os levavam na mão,
e o mordomo-mor ia sempre coberto até o fazer da mesura, que juntamente fazia e
tirava o barrete. E era tamanha cerimónia que durava muito cada vez que iam à
mesa. E o estrondo das trombetas, atambores, charamelas e sacabuxas, e de todo-los
ministréis era tamanho que se não ouviam, e isto se fazia cada vez que El-Rei,
a Rainha, e a Princesa bebiam, e vinham as primeiras iguarias à mesa; e a
copeira era coisa espantosa de ver. E logo à entrada da mesa veio uma grande
carreta dourada, e traziam-na dois grandes bois assados inteiros, com os cornos
e mãos e pés dourados, e o carro vinha cheio de muitos carneiros assados inteiros
com os cornos dourados, e vinha tudo posto num cadafalso tão baixo com rodetas
por fundo dele, que não se viam, que os bois pareciam vivos e que andavam. E
diante vinha um moço fidalgo com uma aguilhada nas mãos picando os bois, que
pareciam que andavam e levavam a carreta, e vinha vestido como carreteiro com
um pelote e um gabão de veludo branco forrado de brocado, e assim a carapuça,
que de longe parecia próprio carreteiro, e assim foi oferecer os bois e
carneiros à Princesa e feito o serviço os tornou a virar com sua aguilhada por
toda a sala até sair fora, e deixou tudo ao povo, que com grande grita e prazer
foram espedaçados, e levava cada um quanto mais podia. E assim vieram juntamente
a toda-las mesas muitos pavões assados com os rabos inteiros, e os pescoços e
cabeça com toda a sua penar que pareceram muito bem por serem muitos, e outras
muitas sortes de aves e caças, manjares e frutas, tudo em muito grande
abundância e grande perfeição.
Muitas e grandes festas se fizeram todos os dias e noites
até domingo, cinco dias de Dezembro, em que houve outro segundo banquete na
dita sala da madeira, de muitas mais invenções, abastança e gentileza, e de muito
mais política, e muito melhor servido que o primeiro». In A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa,
Aspectos da Vida Quotidiana, A Esfera dos Livros 2010, ISBN 978-989-626-241-9.
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