O Tráfico de Escravos na Época
Moderna. A pouca originalidade do tráfico
«(…) Na Época Moderna, o problema consistia essencialmente no
estabelecimento de um comércio regular de escravos entre o continente africano,
a Europa e, posteriormente, a América, através do Atlântico. A novidade
portuguesa foi precisamente a deslocação do comércio do Mediterrâneo para o
Atlântico e a consequente concorrência às actividades comerciais das repúblicas
italianas. A exploração dos territórios coloniais, obrigou a uma intensificação
do emprego de mão-de-obra escrava, como meio de superar o baixo índice populacional,
o que tornou necessário o envio constante de escravos africanos a bom preço,
sem passarem pelos entrepostos comerciais muçulmanos e italianos. Para o homem
da Época Moderna a escravatura desses povos não era uma aberração, mas, pelo
contrário, uma condição perfeitamente justificável à luz do direito, da religião
e até das concepções que foram surgindo sobre a natureza humana. O facto de a
escravidão sempre ter existido no mundo mediterrânico, associado à influência
do Direito Romano e ao pensamento cristão, que admitiam e justificavam este
tipo de domínio, levou à sua aceitação como facto normal e a encarar da mesma
forma o tráfico de cativos.
O direito do mais forte, a salvação das almas e o pretexto de civilizar
foram os novos fundamentos que o mundo moderno, sucessivamente, utilizou para
justificar a redução do homem à condição de escravo e este, à sua mais simples
expressão de instrumento vivo de trabalho, no dizer de Perdigão Malheiro.
Será, segundo Caio Prado Júnior, o esforço muscular, sob a direcção e açoite do
feitor e procurar-se-á nele não
a humanidade do homem, mas a sua animalidade. Será o pária
social. E será assim que, ao longo dos séculos, após os Descobrimentos,
o irão aproveitar, em larga escala, para exploração dos seus domínios, não só
os portugueses, mas todas as potências coloniais europeias.
Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos
Quando, em 1436, Afonso
Gonçalves Baldaia se preparava para mais uma viagem ao longo da costa
africana, o infante Henrique recomendou-lhe que procurasse capturar alguns
naturais, para se poderem obter informações acerca daquelas terras e das gentes
que as povoavam. Porém, foram em vão os esforços de Afonso Gonçalves para
satisfazer os desejos de Henrique. Mais feliz foi Antão Gonçalves,
guarda-roupa do Infante que, em 1441,
foi por ele incumbido de ir ao rio do Ouro buscar azeite e peles de lobos
marinhos. Conhecendo o desejo de seu amo de contactar com gentes daquelas
terras, ultrapassou o mandato recebido e, com o intuito de lhe agradar,
embrenhou-se pela terra dentro, cerca de três léguas, com nove dos seus homens
escolhidos entre os mais capazes, conseguindo capturar dois habitantes. Antão
Gonçalves trazia agora para o reino os primeiros indígenas da região.
Porém, isso não significava para Nuno Tristão, navegador português, que
na altura andava também por aquelas paragens, que não fosse importante trazer
outros, porque além da sabedoria que o senhor infante por eles haveria,
seguir-se-lhe-ia proveito da sua serventia ou rendição. Nestas últimas palavras
de Nuno Tristão, é clara a intenção de adquirir nas terras africanas um suplemento
de braços para os trabalhos agrícolas em Portugal, o que, aliás, não sendo
novidade, vinha na sequência da utilização do mouro, dos guanches e, por vezes, de um ou outro branco, como escravos.
Com o intuito de fazer mais apresamentos, desembarcaram os dois capitães
e, dissimuladamente durante a noite, acometeram de novo os indígenas, aprisionando
10. Regressados a Portugal, foram recebidos com louvores e, o infante Henrique,
vendo os cativos que lhe traziam, deu mostras do seu contentamento, não pela
quantidade dos que vinham, mas pela esperança que tinha dos outros que
podia haver. Um dos cativos de Antão Gonçalves, que se dizia descendente
dos chefes da sua tribo, pedia insistentemente ao navegador para o levar de
regresso à sua terra natal onde, em troca da liberdade, lhe daria 5 ou 6 mouros
negros. Convencido Antão Gonçalves, de novo rumou em direcção ao sul e
trocou este e outro africano por dez negros entre mouros e mouras de terras
desvairadas. A esta segunda viagem de Antão Gonçalves, sucedeu outra de
Nuno Tristão em 1443. Desta vez, os
portugueses alcançaram as ilhas de Arguim e das Garças, cerca de vinte e
cinco léguas além do cabo Branco, onde apresaram 29 indígenas. Estes
primeiros resultados da empresa do Infante foram de facto entusiasmantes.
Muitos haviam-no censurado pelos enormes gastos despendidos com o envio de
navios para paragens de onde nada lhes parecia advir, a não ser a perda total
dos navios e fazendas. Mas ao verem as presas, feitas em tão breve tempo e com tão
pequeno trabalho, as vozes discordantes vacilavam e, em surdina, louvavam
o que antes publicamente doestavam.
Crescia a cobiça, em especial quando viam as casas dos outros cheias de
servos e servas, e suas fazendas acrescentadas».
In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A
Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri,
Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.
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