Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
«(…) A maior parte das
obras consultadas são obras de continuação, compilações ou meros resumos de
outras, que as antecederam, e que pela sua forma e objectivos das obras de
formação erudita. A opção por integrar, ambos os modelos, num processo de observação
cronológico, também possibilita, pensamos, a percepção dos processos que levaram
à sua elaboração. Afinal, repetida até à exaustão, ou observada com os métodos críticos
disponíveis no momento, a construção da imagem de Sancho II corresponde a objectivos
bem determinados. Se, à partida, possa parecer relevante a opção por aquelas obras
que marcaram viragens historiográficas, ou seja, neste caso concreto, aqueles trabalhos
que trouxeram novidades ao estudo da história do reinado de Sancho II, também
nos pareceu interessante observarmos o acumular dos processos repetitivos reproduzidos,
cronologicamente, em muitas histórias com carácter eminentemente divulgativo.
Estas obras que não utilizam como suporte investigações originais, antes resultam
do trabalho de recompilação, de síntese de memórias anteriores, ou de
reescrita, sem sentido crítico, pareceram-nos ocupar um lugar próprio no que
diz respeito à forma como a memória deste rei, o que foi deposto, foi
construída e depois, ensinada e divulgada, desde os inícios do século XIX até
aos nossos dias. E, é por isso que ao lado de obras de perfil marcadamente
erudito e pautadas pela dinâmica das fontes e da sua interminável crítica,
desfilam algumas dessas obras repetitivas e constantemente reescritas com as
mesmas passagens. Se, por um lado, garantimos a apresentação de um estado da
questão historiográfico, que evoluiu cronologicamente, por outro, associamos-lhe
outra realidade, também inegavelmente de sentido cronológico, e que está representada
por esta historiografia divulgativa.
As Histórias Gerais
Todos os compêndios de
história geral de Portugal apresentam um capítulo, de dimensão variada, descritivo
da figura e dos feitos de Sancho II. Estes primeiros trabalhos desenvolvem
essencialmente quadros de observação influenciados pela tradição cronística e
onde o tratamento de fontes documentais é quase ignorado. São histórias que
narram os sucessos militares, civis, eclesiásticos, etc., e limitam-se a isso
mesmo, a produzir narrativas sobre acontecimentos de diversa índole. São obras que
na maior parte das vezes têm perante si objectivos de índole pedagógica e divulgativa.
No fundo particularizam uma escrita muito própria, virada para as massas que
pretendem educar, e onde os
feitos, os acontecimentos, são narrados, muitas vezes de forma romanceada, e
sem recurso à utilização de métodos críticos ou de verificação do que comentam.
O tratamento dado aos acontecimentos do reinado de Sancho II é, por isso superficial,
e geralmente repetitivo de modelos anteriores onde, as personagens, se apresentam
sobre a forma de estereótipos, sendo avaliados sempre da mesma maneira e com o
sentido de produzir um sentimento de continuidade histórica, pouco problematizada,
e centrada apenas na evolução da realidade interna. O modelo do rei incapaz,
porque frágil, doente, pouco enérgico, influenciável por um conjunto de personagens
sinistras, que tantas vezes é referido na cronística, vale como um desses modelos
simplificados.
A problemática das
fontes é geralmente subalternizada, quando não esquecida, por estes
divulgadores, que deixam de fora outros aspectos da história, mais comum a versões
eruditas, como o estudo da genealogia, o processo de investigação, ou a
aplicação da hermenêutica. Neste sentido, estas histórias gerais, de fundo
divulgativo, são especializadas também em aprofundar os silêncios sobre
determinados factos, verdadeiros ou lendários, e sobre figuras cujo percurso
apresenta algumas dificuldades de apresentação.
Não as acusando individualmente todas esta obras padecem de um conjunto de
omissões, claramente assumidas, em função do período em que são produzidas e do
público a que se destinam e, no caso de Sancho II, colocam o leitor perante a
imagem do anti-herói, do rei que a nação não pode homenagear, mas
que se apresenta de forma longínqua e cujo fim é redentor da nação. As histórias
gerais sobre Portugal conhecem outro período de grande desenvolvimento com o
Estado Novo, onde a importância da coesão nacional dirigida para um propósito
muito bem definido, produz modelos patrióticos e heróicos, onde figuras como a
de Sancho II encontram pouca simpatia. Nem mesmo a vertente, assumida por
historiadores como António Brandão e Alexandre Herculano, de que este
rei é responsável por um dos momentos de maior expansão territorial no reino, é
utilizada para valorizar a sua imagem. A posição tradicional assumida por
muitos destes historiadores, sobre a participação militar deste rei, é a da sua
desvalorização, já que a versão oficial assenta a dinâmica da conquista nas
campanhas dirigidas pelos mestres das ordens militares.
Fr. António Brandão (1632)
(Quarta parte da
Monarchia Lusitana que conthem a Historia do reyno de Portugal, desde o tempo
delRey D. Sancho I, até o reynado delRey D. Affonso III. Lisboa, ed.
por Pedro Crasbeek, 1632)
Escrita há trezentos e oitenta e um anos (JDACT) a Quarta Parte da Monarquia Lusitana…, marca o
nascimento da historiografia portuguesa. Apesar de aparecer em jeito de crónica
caracteriza-se já por apresentar um notável espírito crítico em relação às informações
que reproduz. No caso particular do reinado que nos interessa é comum produzir
juízos de valor sobre a forma que as crónicas antigas do reino trataram a memória
daquele rei, apontando incoerências, contradições, impossibilidades e mentiras,
chegando mesmo a corrigir, utilizando processos comparativos, ou verificando se
são verdadeiros ou falsos, documentos notariais, bulas papais e instrumentos
particulares. E, neste aspecto, está uma das novidades, a utilização crítica de
fontes documentais ao lado da interpretação rigorosa e desconfiada das informações que crónicas e livros de linhagens
fizeram chegar ao século XVII, altura em que o distinto cisterciense escreveu».
In
José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de
Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras,
Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.
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