segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Uma Arte de Música. Outros Ensaios. Óscar Lopes. «… apenas nasci num povo em que a luta de classes só não será evidente para uma certa cegueira de espírito, e comungo de uma nação periodicamente renegada por classes dirigentes, que há seis séculos ardiam em fidelidade castelhana, há quatro séculos se queriam integrar no grande império dos Habsburgos, e que hoje se pretendem entusiasmadas por uma Europa estranha»

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Uma Arte de Música e Outros Ensaios. Palavras de Auto-Explicação
«Antes da notícia de me ter sido atribuído este Prémio Jacinto Prado Coelho, da Associação dos Críticos Literários Portugueses, confesso nunca me ter ocorrido que isso viesse a dar-se. Porquê? Talvez porque tenha dificuldade em me ver como crítico ou ensaísta, ou talvez porque tenha uma dificuldade, mais geral ainda, em simplesmente me ver. Valha-nos aquela anedota de um doido a quem perguntaram como é que ele podia entregar-se à mania de ser Napoleão, com madeixa na testa e mão no colete. A resposta foi mais ou menos a seguinte: … ora essa! Porque é que eu não hei-de ser Napoleão? Pois o próprio Napoleão não tinha a mania de ser Napoleão? Eu sei que não sou Napoleão, nem talvez doido, nem crítico, nem ensaísta, nem mesmo essencialmente professor, linguista ou político, assim como nunca me revelei num estilo ou numa visão pessoal do mundo, a não ser pela consciência das limitações ou pontos mortos a que se sujeita tudo aquilo que temos o ensejo e a gana de fazer algum dia. Não confio em qualquer título de auto-reconhecimento, porque tanto as nossas imagens a um espelho polido como as nossas imagens que os olhos alheios devolvem estão, não apenas erradas na sua simetria axial, mas medusadas pelo reflexo inverso do nosso próprio olhar que fita, e que fixa, essas nossas imagens.
Nunca me senti a fazer crítica: apenas se trata de obedecer a uns impulsos, sempre complicados e em conflito, no sentido de continuar, de algum modo, os movimentos também conflituais de que um texto é feito, ou de que mais evidentemente o texto participa. Não faço linguística: trata-se apenas de, com a mais rigorosa metodologia disponível, reflectir sobre certos gestos do nosso mais espontâneo modo de falar, gestos que têm que ver com relações especiais de tempo, de atitude e de referência na comunicação social possível. Também não sou político por vocação: apenas nasci num povo em que a luta de classes só não será evidente para uma certa cegueira de espírito, e comungo de uma nação periodicamente renegada por classes dirigentes, que há precisamente seis séculos ardiam em fidelidade dinástica castelhana, há quatro séculos se queriam integrar no grande império pluricontinental dos Habsburgos, e que hoje se pretendem entusiasmadas por uma Europa estranha, uma Europa muito diferente daquela que, no canto III d'Os Lusíadas avança, em 15 estrofes, desde os Urais até onde a terra acaba e o mar começa, ao passo que a nova Europa vem só para cá, do Oder e tem talvez a capital na Califórnia.
Não sou especialmente crítico, mas é possível que este Prémio tenha o efeito de acelerar a publicação de bastantes textos inéditos, dispersos ou de qualquer modo inacessíveis, numa altura em que as obrigações profissionais me imporiam a concentração num estudo de grupo, um estudo pouco notório e algo ascético das estruturas de comunicação peculiares, ou genéricas, da língua portuguesa. É certo que, se desde há pouco mais de 15 anos estudo de preferência as estruturas semânticas e pragmáticas e não as estruturas poéticas ou narrativas, isso se deve a factores externos, como a proibição, entre 55 e 74, de ensinar Literatura no Liceu; no entanto, suponho que certos interesses fundamentais se mantiveram. Não é apenas apaixonante, em si mesmo, tentar apreender a álgebra da comunicação verbal, sobretudo a daquelas palavras, ou operadores, graças aos quais todas as nossas mais diversas maneiras de pensar e agir, mesmo as que são cientificamente mais sofisticadas, se conjugam com os dados mais radicais da comunicação (o eu e tu, o agora ou não, o aqui ou não, o assim ou de outro modo), mas suponho ainda que, para a apreensão mais fina da poesia, não será indiferente o facto de, por exemplo, a palavra isto, nos seus mais óbvios usos em português, exigir que o contexto desambigue entre os 76 principais tipos diferentes de localização espacial que comporta; ou (ainda outro exemplo) não será indiferente para a poesia reparar-se que o agora, ou o presente, de um enunciado funciona tão elasticamente que, numa mesma frase, pode referir-se a dois ou mais intervalos diferentes, todos ligados ao mesmo acto de enunciação, mas tendo em vista diversos objectivos de práxis verbalizada». In Óscar Lopes, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina Musical, Binográfica, Porto, 1986.

Cortesia de Oficina Musical/JDACT