Uma Arte de Música e Outros Ensaios.
Palavras de Auto-Explicação
«Antes da notícia de me ter sido atribuído este Prémio Jacinto Prado
Coelho, da Associação dos Críticos Literários Portugueses, confesso nunca me ter
ocorrido que isso viesse a dar-se. Porquê?
Talvez porque tenha dificuldade em me ver como crítico ou ensaísta, ou talvez
porque tenha uma dificuldade, mais geral ainda, em simplesmente me ver. Valha-nos
aquela anedota de um doido a quem perguntaram como é que ele podia entregar-se
à mania de ser Napoleão, com madeixa na testa e mão no colete. A resposta foi
mais ou menos a seguinte: … ora essa! Porque
é que eu não hei-de ser Napoleão? Pois o próprio Napoleão não tinha a mania de
ser Napoleão? Eu sei que não sou Napoleão, nem talvez doido, nem
crítico, nem ensaísta, nem mesmo essencialmente professor, linguista ou político,
assim como nunca me revelei num estilo ou numa visão pessoal do mundo, a não
ser pela consciência das limitações ou pontos mortos a que se sujeita tudo
aquilo que temos o ensejo e a gana de fazer algum dia. Não confio em qualquer
título de auto-reconhecimento, porque tanto as nossas imagens a um espelho
polido como as nossas imagens que os olhos alheios devolvem estão, não apenas
erradas na sua simetria axial, mas medusadas pelo reflexo inverso do nosso
próprio olhar que fita, e que fixa, essas nossas imagens.
Nunca me senti a fazer crítica: apenas se trata de obedecer a uns
impulsos, sempre complicados e em conflito, no sentido de continuar, de algum
modo, os movimentos também conflituais de que um texto é feito, ou de que mais
evidentemente o texto participa. Não faço linguística: trata-se apenas de, com a
mais rigorosa metodologia disponível, reflectir sobre certos gestos do nosso
mais espontâneo modo de falar, gestos que têm que ver com relações especiais de
tempo, de atitude e de referência na comunicação social possível. Também não
sou político por vocação: apenas nasci num povo em que a luta de classes só não
será evidente para uma certa cegueira de espírito, e comungo de uma nação
periodicamente renegada por classes dirigentes, que há precisamente seis séculos
ardiam em fidelidade dinástica castelhana, há quatro séculos se queriam
integrar no grande império pluricontinental dos Habsburgos, e que hoje se pretendem
entusiasmadas por uma Europa estranha, uma Europa muito diferente daquela que,
no canto III d'Os Lusíadas avança, em 15 estrofes, desde os Urais até onde
a terra acaba e o mar começa, ao passo que a nova Europa vem só para
cá, do Oder e tem talvez a capital na Califórnia.
Não sou especialmente crítico, mas é possível que este Prémio tenha o
efeito de acelerar a publicação de bastantes textos inéditos, dispersos ou de
qualquer modo inacessíveis, numa altura em que as obrigações profissionais me
imporiam a concentração num estudo de grupo, um estudo pouco notório e algo
ascético das estruturas de comunicação peculiares, ou genéricas, da língua
portuguesa. É certo que, se desde há pouco mais de 15 anos estudo de
preferência as estruturas semânticas e pragmáticas e não as estruturas poéticas
ou narrativas, isso se deve a factores externos, como a proibição, entre 55 e 74, de ensinar Literatura
no Liceu; no entanto, suponho que certos interesses fundamentais se mantiveram.
Não é apenas apaixonante, em si mesmo, tentar apreender a álgebra da comunicação
verbal, sobretudo a daquelas palavras, ou operadores, graças aos quais todas as
nossas mais diversas maneiras de pensar e agir, mesmo as que são
cientificamente mais sofisticadas, se conjugam com os dados mais radicais da
comunicação (o eu e tu, o agora ou não, o aqui ou
não, o assim ou de outro modo), mas
suponho ainda que, para a apreensão mais fina da poesia, não será indiferente o
facto de, por exemplo, a palavra isto,
nos seus mais óbvios usos em português, exigir que o contexto desambigue entre
os 76 principais tipos diferentes de localização espacial que comporta; ou (ainda
outro exemplo) não será indiferente para a poesia reparar-se que o agora,
ou o presente, de um enunciado funciona tão elasticamente que, numa mesma
frase, pode referir-se a dois ou mais intervalos diferentes, todos ligados ao
mesmo acto de enunciação, mas tendo em vista diversos objectivos de práxis
verbalizada». In Óscar Lopes, Uma Arte de Música e Outros Ensaios, Oficina Musical,
Binográfica, Porto, 1986.
Cortesia de Oficina Musical/JDACT