Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a
velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se? In
Camilo Castelo Branco, A
Enjeitada.
«(…) Que magnifico
amanuense seria Camillo! Tinha ortographia, prenda não vulgar em Ribeira
de Pena e outras partes, incluindo as ilhas adjacentes, mas, principalmente,
dispunha de uma bella calligraphia, que a rapidez da escripta não conseguiu
estragar completamente mais tarde. Sebastião Santos não podia encontrar melhor genro,
nem mais a seu geito. Dir-se-ia que o tendeiro de Friume, o
antigo alfaiate de Gondomar, tivera a intuição do futuro de gloria reservado a Camillo.
A certa altura impoz o casamento, tanto mais invejado quanto a
imaginação popular, fascinada pelas eminentes qualidades do sobrinho de D.
Rita, acalentara a lenda de que elle teria a receber uma grande herança. Foi
por uma tarde de Agosto, a 18, de 1841
que, na egreja do Salvador de Ribeira de Pena. Camillo Ferreira Botelho
Castello Branco desposou a filha de Sebastião Martins dos Santos. O párocho
encommendado, Domingos José Ribeiro, lançou as bênçãos. Como testemunhas
assistiram o padre José Maria Sousa, de Pontido de Aguiar, e o genro de D.
Rita, Francisco José Ribeiro Moreira, primo, por affinidade. de Camillo.
Está a gente a ver toda a movimentação teatral d'essa tarde de Agosto em Friume.
Camillo, uma creança de
dezeseis anos, mentalizando a plenitude da posse
legitima na contemplação da noiva, cujas graças acirrantes, modeladas numa
plástica vigorosa, a elle offuscariam nessa hora electrizante os liames e
encargos do casamento. Joaquina Pereira, espiritualizada pela paixão, que é dynamite
capaz de fazer saltar os mais duros blocos do cérebro humano, e ella era uma
pobre camponeza, que ainda assim se distinguia entre muitas outras por saber
ler e escrever. Sebastião dos Santos desvanecido pela satisfação de ter ganho a
partida num rápido lance de távolas, dizendo porventura aos convidados que, nas
suas mãos, o rapaz havia de ir muito
longo. As raparigas de Friume mordidas de inveja pela felicidade que
uma estranha lhes viera roubar, levando-lhes o melhor noivo que podiam
apetecer, e a herança fabulosa que havia de enriquecel-o um dia. A casa
dos noivos, em Friume, era, como a maior parte de todas as da povoação,
construída de pedra tosca, sem rebocos e sem vidraças. Foi essa choupana o
ninho de amor onde Camillo passou os dias do noivado, certamente sem ambicionar holiandas
finas para o leito, manjares delicados para a mesa, perfumes de boudoir que não fossem o do rosmaninho
silvestre e da madresilva das sebes floridas.
Elle chegaria a julgar,
talvez, que a sua existência derivaria toda alli. placidamente. á beira do
Tâmega, contente com o amor dedicado e leal, que encontrara no coração de Joaquina
Pereira. E, comtudo, a vida amorosa de Camillo começava apenas; aquelle
sereno idyllio conjugal era o prefacio de um inferno de paixões tempestuosas. Ambições,
quem lh'as dera, fora o próprio sogro, fascinado pela evidencia social que lhe
viria do genro. A breve trecho Sebastião Martins dos Santos quis que Camillo se
preparasse para um curso superior. Desejava-o medico e, para realizar este
ideal, não duvidou affastar Camillo de Friume». In Alberto Pimentel, A Primeira
Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª -
Editores, Lisboa, 1916.
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