terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Jazz. Poesia. Vida. Abbey Lincoln. «Na vertigem do oceano vagueio sou ave que com o seu voo se embriaga. Atravesso o reverso do céu e num instante eleva-se o meu coração sem peso. Como a desamparada pluma subo ao reino da inconstância para a palavra inquieto…»

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«Na distância que percorro
eu mudo de ser
permuto de existência
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher».


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Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «António Brandão não deixa de apontar a “má consciência” dos que para valorizarem, e legitimarem, a subida ao trono de Afonso III, distorceram a verdade e enganaram a razão ao humilharem com todos os defeitos o príncipe deposto»

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Sancho II de Portugal. Fr. António Brandão (1632)
«(…) É comum ao referir-se a códices existentes na Torre do Tombo reclamar da sua veracidade, apontando-os como cópias e indicando quais os erros contidos. Entre muitos exemplos que podemos dar da sua perícia e da sua prudência podemos apontar o que dizia sobre os feitos militares do famoso Paio Peres Correia, um dos maiores capitães do tempo de Sancho II. Afirmava que queria seguir o que os antigos tinham escrito, mas adverte os seus leitores que irá discordar de muitas informações que aqueles apresentam, pois os tempos são outros. Exemplo desta interessante postura crítica pode ser o que afirma sobre a veracidade do episódio de Trancoso, quando Sancho II se prepara para abandonar o país. Considera verdadeiras as reclamações de lealdade dalguns cavaleiros para com o seu senhor. Diz que não crê em tudo, nem dúvida de tudo. O escrúpulo pela verdade parece predominar neste autor. É, o último dos cronistas, e o primeiro dos historiadores portugueses. E, talvez, por este facto, seja apreciável, de todas as obras que escreveu, observar como no Livro IV recupera a memória de Sancho II, afirmando peremptoriamente de que este foi um rei injustiçado e muitas das estórias que se contavam não faziam jus aos feitos daquele monarca. Duarte Nunes Leão, Rui de Pina, Fernão Lopes, todos referiam, até à exaustão, as poucas qualidades de soberano que Sancho II apresentava. Era para eles um ser inútil, incapaz e incapaz. Prejudicial para o reino e para os povos que governava e responsável por todas as violências e crimes, grandes e pequenos, que assolavam o reino.
Todas aquelas crónicas seguiam um caminho pré-determinado: o da deposição do rei. Todos os assuntos, todos os acontecimentos, toda a lógica de construção da narrativa se dirigia para a necessidade que o país tinha de se ver livre daquele monarca, marcando-o como um soberano desprezível, que nem aos mouros sabia fazer a guerra. E, bastou um documento exarado nos gabinetes da Santa Sé, por um papa da Cristandade, para a infelicidade de Sancho ser completa e ficar marcado, definitivamente, para a história. Nenhuma crónica se atreve a elogiar, mesmo depois da sua morte, as suas virtudes, os seus feitos, as suas acções em prol da paz e do bem comum; nenhuma se esforçava por diminuir algum dos vergonhosos epítetos que de todo o lado surgiam e tombavam sobre a memória do rei. Queria-se odiosa para o país, como exemplo do que não deve ser um governante.
E Brandão? O que achava aquele monge cisterciense? A visão sob o reinado de Sancho II é bastante crítica. Crítica, para já, em relação aos que narravam vituperando o rei, mas crítica também, porque apesar de valorizar os feitos do soberano que lhe pareciam ser indiscutíveis e que estavam sustentados em documentos bastante verosímeis, discutia e criticava algumas opções de governo menos felizes por parte do monarca. No entanto, e apesar desta tentativa de distanciamento sobre as provas, característica de uma forte consciência historiográfica, António Brandão não deixa de apontar a má consciência dos que para valorizarem, e legitimarem, a subida ao trono de Afonso III, distorceram a verdade e enganaram a razão ao humilharem com todos os defeitos o príncipe deposto. Apesar de escrita no século XVII esta narrativa do reinado de Sancho II não passou despercebida à historiografia romântica do século XIX e, Alexandre Herculano recupera muitas das afirmações daquele autor seiscentista, como verídicas e bem fundamentadas. O recurso à confrontação com os documentos, embora não tão desenvolvida como no tempo de Herculano, não deixava de ser apreciada por este historiador que não desprezou muitas das informações sugeridas por Brandão.
Parece ser Brandão o primeiro a sugerir alguns dos problemas que mais tarde irão tornar-se incontornáveis, de uma forma ou de outra, para todos os que tentaram estudar com maior profundidade aquele reinado. E o primeiro, como não podia deixar de ser, é a apresentação da menoridade do rei na subida ao trono. A posição de António Brandão não é muito clara, já que ao longo do seu trabalho entra em contradição em relação à idade que o príncipe teria e que Herculano perspicazmente criticou. Se a data de casamento de Afonso II parece não apresentar controvérsia. Todos os historiadores depois de Herculano a aceitam como verdadeira, a afirmação de que o jovem rei teria já vinte anos em 1223 é muito mais difícil de aceitar e, provavelmente, um erro de leitura sobre a Era em que o documento foi produzido (Brandão, trocou a Era de 1251 pela de 1241) e que à primeira vista lhe parecia argumento suficiente para apresentar o monarca como adulto quando subiu ao trono». In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «… recupera a memória de Sancho II, afirmando perentoriamente de que este foi um ‘rei injustiçado’ e muitas das estórias que se contavam não faziam jus aos feitos daquele monarca»

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Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
«(…) A maior parte das obras consultadas são obras de continuação, compilações ou meros resumos de outras, que as antecederam, e que pela sua forma e objectivos das obras de formação erudita. A opção por integrar, ambos os modelos, num processo de observação cronológico, também possibilita, pensamos, a percepção dos processos que levaram à sua elaboração. Afinal, repetida até à exaustão, ou observada com os métodos críticos disponíveis no momento, a construção da imagem de Sancho II corresponde a objectivos bem determinados. Se, à partida, possa parecer relevante a opção por aquelas obras que marcaram viragens historiográficas, ou seja, neste caso concreto, aqueles trabalhos que trouxeram novidades ao estudo da história do reinado de Sancho II, também nos pareceu interessante observarmos o acumular dos processos repetitivos reproduzidos, cronologicamente, em muitas histórias com carácter eminentemente divulgativo. Estas obras que não utilizam como suporte investigações originais, antes resultam do trabalho de recompilação, de síntese de memórias anteriores, ou de reescrita, sem sentido crítico, pareceram-nos ocupar um lugar próprio no que diz respeito à forma como a memória deste rei, o que foi deposto, foi construída e depois, ensinada e divulgada, desde os inícios do século XIX até aos nossos dias. E, é por isso que ao lado de obras de perfil marcadamente erudito e pautadas pela dinâmica das fontes e da sua interminável crítica, desfilam algumas dessas obras repetitivas e constantemente reescritas com as mesmas passagens. Se, por um lado, garantimos a apresentação de um estado da questão historiográfico, que evoluiu cronologicamente, por outro, associamos-lhe outra realidade, também inegavelmente de sentido cronológico, e que está representada por esta historiografia divulgativa.

As Histórias Gerais
Todos os compêndios de história geral de Portugal apresentam um capítulo, de dimensão variada, descritivo da figura e dos feitos de Sancho II. Estes primeiros trabalhos desenvolvem essencialmente quadros de observação influenciados pela tradição cronística e onde o tratamento de fontes documentais é quase ignorado. São histórias que narram os sucessos militares, civis, eclesiásticos, etc., e limitam-se a isso mesmo, a produzir narrativas sobre acontecimentos de diversa índole. São obras que na maior parte das vezes têm perante si objectivos de índole pedagógica e divulgativa. No fundo particularizam uma escrita muito própria, virada para as massas que pretendem educar, e onde os feitos, os acontecimentos, são narrados, muitas vezes de forma romanceada, e sem recurso à utilização de métodos críticos ou de verificação do que comentam. O tratamento dado aos acontecimentos do reinado de Sancho II é, por isso superficial, e geralmente repetitivo de modelos anteriores onde, as personagens, se apresentam sobre a forma de estereótipos, sendo avaliados sempre da mesma maneira e com o sentido de produzir um sentimento de continuidade histórica, pouco problematizada, e centrada apenas na evolução da realidade interna. O modelo do rei incapaz, porque frágil, doente, pouco enérgico, influenciável por um conjunto de personagens sinistras, que tantas vezes é referido na cronística, vale como um desses modelos simplificados.
A problemática das fontes é geralmente subalternizada, quando não esquecida, por estes divulgadores, que deixam de fora outros aspectos da história, mais comum a versões eruditas, como o estudo da genealogia, o processo de investigação, ou a aplicação da hermenêutica. Neste sentido, estas histórias gerais, de fundo divulgativo, são especializadas também em aprofundar os silêncios sobre determinados factos, verdadeiros ou lendários, e sobre figuras cujo percurso apresenta algumas dificuldades de apresentação. Não as acusando individualmente todas esta obras padecem de um conjunto de omissões, claramente assumidas, em função do período em que são produzidas e do público a que se destinam e, no caso de Sancho II, colocam o leitor perante a imagem do anti-herói, do rei que a nação não pode homenagear, mas que se apresenta de forma longínqua e cujo fim é redentor da nação. As histórias gerais sobre Portugal conhecem outro período de grande desenvolvimento com o Estado Novo, onde a importância da coesão nacional dirigida para um propósito muito bem definido, produz modelos patrióticos e heróicos, onde figuras como a de Sancho II encontram pouca simpatia. Nem mesmo a vertente, assumida por historiadores como António Brandão e Alexandre Herculano, de que este rei é responsável por um dos momentos de maior expansão territorial no reino, é utilizada para valorizar a sua imagem. A posição tradicional assumida por muitos destes historiadores, sobre a participação militar deste rei, é a da sua desvalorização, já que a versão oficial assenta a dinâmica da conquista nas campanhas dirigidas pelos mestres das ordens militares.

Fr. António Brandão (1632)
(Quarta parte da Monarchia Lusitana que conthem a Historia do reyno de Portugal, desde o tempo delRey D. Sancho I, até o reynado delRey D. Affonso III. Lisboa, ed. por Pedro Crasbeek, 1632)
Escrita há trezentos e oitenta e um anos (JDACT) a Quarta Parte da Monarquia Lusitana…, marca o nascimento da historiografia portuguesa. Apesar de aparecer em jeito de crónica caracteriza-se já por apresentar um notável espírito crítico em relação às informações que reproduz. No caso particular do reinado que nos interessa é comum produzir juízos de valor sobre a forma que as crónicas antigas do reino trataram a memória daquele rei, apontando incoerências, contradições, impossibilidades e mentiras, chegando mesmo a corrigir, utilizando processos comparativos, ou verificando se são verdadeiros ou falsos, documentos notariais, bulas papais e instrumentos particulares. E, neste aspecto, está uma das novidades, a utilização crítica de fontes documentais ao lado da interpretação rigorosa e desconfiada das informações que crónicas e livros de linhagens fizeram chegar ao século XVII, altura em que o distinto cisterciense escreveu». In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT

Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista. Maria da Graça Ventura. «Un galéon medio del siglo XVI de un porte de alrededor de 500 toneladas, montaba unos veinte cañones, tenía una eslora de entre veintiocho y treinta metros y una manga de ocho metros, llevando una tripulación de unos doscientos cincuenta hombres»

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As Rotas
La Carrera de Indias: Inconvenientes y Ventajas del Sistema Español de Comunicaciones Transatlánticas
«(…) Finalmente, una de las consecuencias más interesantes relacionadas com la labor científica de la Casa de la Contratación fue la publicación de un nutrido grupo de libros de náutica, que resumían los conocimientos de la época sobre esta materia. Una gran parte de los autores de dichos libros fueron personajes adscritos a la Casa, bien como pilotos mayores o como profesores de cosmografía, mientras el resto se dedicaban a diferentes tareas relacionadas con el mundo de la Carrera de Indias. Algunos de estos libros fueron auténticos best sellers de la época y, en pocos años, obtuvieron decenas de reediciones en las más importantes lenguas europeas. A través de ellos, los restantes navegantes del Viejo Continente vieron resumidas las experiencias obtenidas por los navegantes portugueses y españoles. Como prueba de su importancia baste recordar que Francis Drake, cuando realizó su viaje de circunnavegación de la Tierra, utilizó la versión inglesa del Breve tratado de la Sphera y del Arte de Navegar de Martín Cortés; mientras que otra de las obras maestras de este tipo de libros, el Arte de Navegar, de Pedro Medina, fue puesto como ejemplo por los cosmógrafos de la corte de Francia. Junto con la Casa de la Contratación no deben olvidarse dos instituciones de caracter privado que tuvieron una gran influencia en la organización de la Carrera de Indias. La más importante fue el Consulado de Comercio, fundado en 1534 con sede en Sevilla. Su misión era resolver, mediante un rápido sistema procesal, todos los pleitos entre los comerciantes; pero, de hecho, funcionó como el portavoz de los intereses de los grandes mercaderes interesados en el tráfico colonial. Estos que cada vez fueron menos en número pero más ricos, basaban su fuerza en los préstamos que realizaban al rey, lo cual los convertía, a la vez que en financiadores de la política naval de la Corona, en los árbitros de la salida y llegada de las flotas. A fines del siglo XVI, lo poderosos comerciantes del Consulado construyeron un soberbio edificio para albergar su sede, que hoy en dia se emplea como Archivo General de Indias. Eligieron su emplazamiento en las cercanías de la catedral y del alcazar, haciendo ver que junto a los poderes de la religión y de la Corona se alzaba ahora el del dinero.
La segunda institución agrupaba a los pilotos, maestres y dueños de barcos de la Carrera de Indias, reunidos en torno a una denominada Universidad de los Mareantes, que tuvo su sede en Triana, el arrabal marinero de la orilla derecha del rio Guadalquivir. Como los dueños de barcos fueron siempre menos ricos que los comerciantes, la capacidad de presión de su asociación fue también mucho menor y se contentaron com regentar un hospital para atender a los marineros enfermos y proporcionar limosnas y ayuda a las viudas y a los huérfanos de la mar. Organizar una de las dos flotas anuales con destino a las Indias suponía reunir centenares de buques y miles de tripulantes. A modo de ejemplo digamos que la que partió para la Nueva España en 1590 la componían 81 buques, tripulados por 3.589 hombres. Teniendo en cuenta que en algunos años los buques enviados a América fueron más de 200, hay que pensar que a fines del siglo XVI y principios del siglo XVII, que fue cuando se produjo uno de los momentos álgidos del trafico comercial, las flotas de un solo año precisaban entre 7.000 y 8.000 tripulantes. A modo de comparación, piénsese que en la construcción del monasterio del Escorial, no llegaron a trabajar más de 1.000 obreros a un tiempo.
Una vez que se producía la salida, a los tripulantes les esperaba, si todo iba bien, un viaje de unos ocho o nueve meses de duración, contando el periodo de navegación y el de estancia en los puertos americanos. Alrededor del 10% de los marineros que dejaban el Gudalquivir nunca volverían a ver las costa andaluzas, pues perecerían víctimas de los accidentes laborales, los naufragios y, sobre todo, de las epidemias que solían declararse en los insalubres puertos tropicales, convertidos, así, en definitivo fin de trayecto para las ilusiones de muchos marinos. Pero bastantes más de los que morían en el viaje eran los que desertaban al llegar a América, tierra de promisión y esperanza para una buena parte de los desesperados del Viejo Mundo. El tipo de buque más corriente en la Carrera de Indias durante los siglos XVI y XVII fue la nao. Se trataba inicialmente de una embarcación de tres palos y de pequeño tonelaje (no mucho más de 100 toneladas), pero reciamente construido para soportar las duras condiciones de la navegación transatlânttca. A principios del siglo XVII la media de tonelaje estaba ya en en las 250 toneladas y para la siguiente centuria se sobrepasaron las 300 toneladas de media por embarcación. En este siglo las naos fueron haciendose cada vez más estilizadas y desprovistas de castillos y puentes a proa y popa, dando lugar a las ágiles fragatas mercantes de fines del XVIII. La proteción de los mercantes estuvo encomendada durante los dos primeros siglos a galeones que arqueaban entre 300 y más de 1000 toneladas. En el siglo XVIII los barcos de guerra sufrieron un processo semejante al de los mercantes y se transformaron en navíos que llegaron a alcanzar las 2.000 toneladas. Un galéon medio del siglo XVI de un porte de alrededor de 500 toneladas, montaba unos veinte cañones, tenía una eslora de entre veintiocho y treinta metros y una manga de ocho metros, llevando una tripulación de unos doscientos cincuenta hombres entre oficiales, marineros, artilleros y soldados». In Pablo Emílio Perez-Mallaina, Viagens e Viajantes no Atlântico Quinhentista, coordenação de Maria da Graça Ventura, Edições Colibri, Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-21-2.

Cortesia de Colibri/JDACT

Decifração em Textos Medievais. Apertio Libri. Arnaldo Espírito Santo. «Este pão é a Escritura, o qual pão, ou seja, a qual escritura os homens, como crianças sem forças, antes da vinda de Cristo, pediam que lhes fosse partido, ou seja, que lhes fosse aberta e interpretada»

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Conferências. Paradigma
«(…) Refiro esta cena para advertir que este livrinho que está aberto na mão do anjo não é o mesmo livro que, no capítulo V, é objecto da cerimónia da apertio libri nem tem a mesma carga simbólica. Aí tratava-se de um livro selado por sete selos, cujo conteúdo nunca chega a ser revelado; aqui, no cap. X, trata-se de um livrinho aberto que foi entregue por um anjo ao Profeta como sucederá com Ezequiel, e que é doce na boca porque contém a palavra de Deus. Mas porque é que é amargo no estômago? Diferença significativa em relação ao livro de Ezequiel. Sobre este aspecto da simbologia do livro a exegese patrística e medieval é muito parca, pois todos se confinam, de uma maneira ou de outra, ao isótopo da penitência, que decorre da doçura da leitura e da pregação. Acentuemos, porém, que a palavra de Deus não se apresenta, nem a Ezequiel nem ao autor do Apocalipse, como mensagem oral, mas como um livro que é preciso comer. Relevamos ainda uma outra verificação: a simbologia da apertio libri transita de Ezequiel, em contexto normal do exercício da actividade profética, para contextos apocalípticos ou de fim do mundo. Assim a vamos encontrar no 4.º livro de Esdras, um apócrifo escrito em finais do séc. I d. C. Aí a abertura dos livros (não do livro) será feita diante do firmamento, para que venha à luz do dia a maldade dos homens. Aqui a função simbólica da apertio libri remete para o grande dia, o do julgamento. No Apocalipse, que recolhe a mesma tradição, a abertura dos livros onde está contido o registo das acções dos homens é feita diante do trono. Por esses livros foram ou serão julgados os mortos.
Com esta segunda abertura do livro completamos dois elementos essenciais da cultura medieval, o fim do mundo e o julgamento individual: o livro é uma ameaça tremenda porque contém a prova da futura condenação. É evidente que se trata mais uma vez de um símbolo, neste caso de um locus terribilis. Pelo livro se recebe a missão, pelo livro se recebe a mensagem divina, pelo livro se recebe a conversão, pelo livro se muda de vida, pelo livro se é julgado. Um dos casos mais interessantes deste género de abertura do livro é o que ocorre num fragmento copta do Apocalipse de Henoch, um apócrifo do séc. V da nossa era, mas que apresenta as mesmas características dos apócrifos judaicos. Assim como João, o autor do Apocalipse, assim também Henoch é arrebatado. Mas se no Apocalipse o arrebatamento se pode entender de uma forma espiritual, no caso de Henoch diz-se expressamente que foi arrebatado corporalmente ao céu. Uma vez aí, Henoch não só recebe a revelação dos mistérios, mas ainda lhe é apresentado um livro, selado com três selos, no qual se encontra escrito o nome e os desígnios de Deus. É este o conteúdo da revelação feita a Henoch. O nome escrito é o da Santíssima Trindade, clara interpolação de origem cristã. Mas além disso, é atribuída a Henoch a função de escriba das acções dos homens. Trata-se de um outro livro que vem desempenhar as mesmas funções da segunda abertura do livro que encontramos no Apocalipse e que se relaciona com o juízo final.

Decifração
A abertura do livro é a fundamentação da vida da Igreja e, por ela, da sociedade ocidental. Segundo um autor de finais do séc. VIII que em plena época carolíngia escreveu um comentário ao Apocalipse, a abertura do livro dá-se após a descrição da forma da Igreja. E esse autor explica que depois de a Igreja ser fundada pelos Apóstolos e pelos restantes pregadores entre os gentios, começaram a fazer-se os comentários aos livros do Velho e do Novo Testamento: comentários avalizados por serem escritos por santos doutores e por estarem de acordo com a norma da fé apostólica.
Nesta perspectiva, o decifrador do texto por excelência, neste caso, do texto bíblico, é o comentador, o expositor, enfim, o autor de comentários. E, mais ainda, o comentador tem uma função importante na vida da Igreja, tão importante como a do apóstolo e a do pregador, porque é ele que vai renovando a própria doutrina interpretada segundo a norma apostólica da fé. Dele se espera que seja um vir ou um doctor sanctus. Retenhamos deste texto a equação apertio libri apertio divinarum scripturarum. Permitam-me um salto do séc. VIII para o séc. XII a fim de cotejar um texto belíssimo de Pedro Abelardo, extraído do seu Epítome de Teologia Cristã. Diz Abelardo, em texto que traduzo:

Este pão é a Escritura, o qual pão, ou seja, a qual escritura os homens, como crianças sem forças, antes da vinda de Cristo, pediam que lhes fosse partido, ou seja, que lhes fosse aberta e interpretada, e não havia quem lho partisse, até que Cristo veio para lhes abrir as Escrituras. Por isso diz João no Apocalipse: E ninguém podia abrir o livro e quebrar os selos.

Depara-se-nos aqui a mesma imagem da abertura do livro cujo conteúdo está cifrado, não obstante ser um alimento essencial. Na belíssima expressão de Abelardo o pão é a escritura e a escritura é o pão». In Arnaldo Espírito Santo, Aperto Libri. Uma representação simbólica da descodificação textual, Da Decifração em Textos Medievais, coordenação de Ana Morais, Teresa Araújo, Rosário Paixão, IV Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, Lisboa 2002, Edições Colibri, Lisboa, 2003, ISBN 972-772-425-6.

Cortesia de Colibri/JDACT

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O Infante Fernando de Portugal. Senhor de Serpa (1218-1246). Armando S. Pereira. «A atribuição que lhe é feita do senhorio da terra de Serpa, na fronteira mais meridional com o Islão, surge quase como um prémio ou reconhecimento da sua maioridade, e aí podia exercitar amplamente as suas virtudes guerreiras»

Cortesia de wikipedia

História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante
«(…) Livro que invoca e reactualiza a memória dos mortos, confinada ao espaço sacralizado do templo. Os outros, os livros da vida, mergulham-no no esquecimento. Incompreensivelmente. De facto, nobiliários e crónicas não podiam ser mais lacónicos a seu respeito, mencionando-o apenas na linha de descendência de Afonso II, sem qualquer menção de relevo. Desaparecido o seu corpo, perdido o nome entre as episódicas e vagas anotações dos pergaminhos, esquecido o personagem nos densos textos pontifícios que, ora com violência ora com compaixão, o evocam, assim tem permanecido olvidada a sua memória.

NOTA: O infante D. Fernando aparece muitas vezes citado por Alexandre Herculano a propósito da sua intervenção na crise do reinado de Sancho II, em particular sobre os seus conflitos com a Igreja; cf. História de Portugal. Desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III. Lisboa, 1980, ed. Crítica de José Mattoso; e é nesta perspectiva que tem sido evocado o seu nome nas histórias gerais de Portugal, de que basta citara mais recente, de José Mattoso, História de Portugal. Lisboa, 1992, vol. II; a figura do infante mereceu um esboço biográfico mais detalhado ao conde de Ficalho; o infante D. Peruando de Serpa, in Notas históricas acerca de Serpa, Lisboa, 1979 (a 1ª ed. é de 1904), pp. 99-107. Depois da pequena nota biográfica da Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, Lisboa-Rio de Janeiro, s/d, vol. XI, o Dicionário de História de Portugal (dir. Joel SERRÃO), Porto. 1984. vol. II, reduze-o a algumas poucas palavras. Os elementos prosopográficos da sua vida foram actualizados por Leontina Ventura, A nobreza da corte de Afonso III, Coimbra. 1992, vol. II tese de doutoramento policopiada.
Sobre Afonso II e o significado da conquista de Alcácer no contexto do seu reinado, cf. Luís R US; Afonso II. D. (I 185-1223); in Dicionário ilustrado da História de Portugal, Lisboa, 1985, vol. I; um estudo muito minucioso, com recurso a fontes coevas, encontra-se em Maria Teresa Lopes Pereira; Memória cruzadística do feito da tomada de Alcácer (1217), segundo o Carmen de Gosuíno; in 2º Congresso histórico de Guimarães, D. Afonso Henriques e a sua época; Actas, Guimarães, 1997.

Quando o infante Fernando nasceu, o seu pai devia comemorar ainda com júbilo a vitória sobre Alcácer do Sal, conseguida alguns meses antes, em Outubro do ano de 1217; apesar de aí não ter participado directamente, atacado pela doença e envolvido que andava na administração do Reino, trata-se do único grande triunfo sobre o Islão durante o seu reinado. Já desde 1212 que o poderio almóada declinava na Península, e o Andaluz era uma faixa de terra cada vez mais estreita em acelerada regressão para o Mediterrâneo, mas será sobretudo a partir dos últimos anos da década de vinte do século XIII, quando surgem as terceiras taifas, que a grande Reconquista avança em todas as frentes: catalães e aragoneses ocupam as Baleares em 1229 e o Reino de Valência a partir de 1232; depois das conquistas de Cáceres, em 1227, e Badajoz, em 1230, castelhanos e leoneses, unidos em Fernando III, lançam-se à conquista das praças da Estremadura e avançam sobre o vale do Guadalquivir durante a década de trinta, em direcção às vastas, ricas e urbanizadas planícies do Sul. É também por estes anos que os portugueses ocupam o vale do Baixo Guadiana: após o fracasso de Elvas em 1226, a ocupação do Alentejo e do Algarve é relativamente rápida, pelo abandono de algumas praças por um Islão fragmentado e dividido, pela simultaneidade da reconquista castelhana, pela participação dos profissionais da guerra que eram os cavaleiros das ordens militares e ainda com o auxílio das milícias concelhias, mais do que por uma suposta actuação e iniciativa de um rei de infrutífera belicosidade. É neste panorama que tem lugar a conquista de Serpa, conseguida pela acção de Afonso Peres Farinha, prior do Hospital, Ordem que passa a controlar as principais praças da margem esquerda do Guadiana .
Corria o ano de 1232 e o infante Fernando, agora com 14 anos, a mesma idade com que o seu bisavô se armou cavaleiro na catedral de Zamora, já se podia orgulhar de também ele ser cavaleiro, uma vez alcançada a idade de rebora, entrando assim no mundo dos adultos, um mundo de guerreiros e aventura, onde o prestígio se alcança pela qualidade das façanhas realizadas. Foi nesta ambiência que cresceu e se fez homem, entre as armas, a violência, o sangue e as histórias das proezas, mais ou menos fantasiosas, que ouvia contar. Não se sabe quem foi o responsável pela sua educação, ou quem o acompanhou de perto nesta primeira fase da sua vida, mas se quiseram fazer dele um homem de guerra, conseguiram-no perfeitamente.

NOTA: Sobre as representações mentais que modelam e dão consistência ao grupo nobre, e o comportamento social daí resultante, marcado pela guerra, pela violência e pelo culto da força física, veiculadas e cristalizadas num determinado modelo educativo cf. José Mattoso, Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325), 5ª ed. Lisboa. 1995. Para uma interpretação do papel da agressividade no contexto das estruturas sociais da Idade Média, La civilisation des moeurs. Paris. 1995.

A atribuição que lhe é feita do senhorio da terra de Serpa, na fronteira mais meridional com o Islão, surge quase como um prémio ou reconhecimento desta sua maioridade, e como terra de fronteira que era, aí podia exercitar amplamente as suas virtudes guerreiras. Não são claras as circunstâncias em que este senhorio lhe foi atribuído, na ausência de documento que o confirme, mas é prova concludente o facto de assim sempre se intitular e ser denominado. Mesmo assim, vejamos, em hipótese, como isto se processou. No seu último testamento, de Novembro de 1221, Afonso II deixava parte dos seus bens móveis aos filij mei et filia me a quos habeo de Regina doitina Vrraca et inter ipsos equaliter dividantur. Avancemos um pouco no tempo. Em 22 de Dezembro de 1239, na bula Constitutus in presentia nostra. Gregório IX ordenava ao bispo de Osma e ao abade de Valladolid que anulassem o contrato feito entre o infante e o rei Sancho, seu irmão, no qual o primeiro renunciava aos bens a que tinha direito pelo testamento paterno e àqueles que lhe eram devidos pela morte de sua irmã Leonor em 1231; provavelmente teria sido a pedido seu ao queixar-se ao papa do facto de naquela altura ainda ser minor, e por isso ter ficado lesado em tal acordo». In Armando Sousa Pereira, O Infante Fernando de Portugal, Senhor de Serpa (1218-1246), História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante, Estudo apresentado em Setembro de 1997, Seminário “A nobreza medieval portuguesa: parentesco, identidade e poder”, dirigido por Bernardo Vasconcelos Sousa, revista Lusitânia Sacha, 2ª série, 10, 1998.

Cortesia de LSacha/JDACT

O Infante Fernando de Portugal. Senhor de Serpa (1218-1246). Armando S. Pereira. «Uma morte tão jovem, sobretudo quando nos apercebemos da imensa vitalidade, ‘o infante rufia’, que demonstrou. “Seriam estas as causas da sua morte?” É possível que sim, ‘que tenha tido uma morte violenta’»

Cortesia de wikipedia

História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante
«Edificada sobre uma religião de recordação, a Igreja medieval integra desde cedo nos seus rituais as orações pelos mortos, desenvolvendo-se em paralelo os chamados libri memoriales, listas nominais, organizadas em forma de calendário, que registam os óbitos dos benfeitores das igrejas, geralmente os seus próprios membros, personagens ilustres ou outros particulares, e as respectivas doações para por eles se celebrarem missas de aniversário (sobre a memória dos mortos, e a forma como era ritualizada durante a Idade Média; além dos necrológios, há um outro tipo de literatura conexa, os martirológios, que associam os mortos aos mártires fixados e celebrados pelo calendário litúrgico). A Sé de Lamego possui um desses livros, um Obituário composto no fim do século XIII por volta de 1293, onde fomos encontrar, naquele incógnito emaranhado de muitos nomes, a seguinte ocorrência: Obijt domnis domnus Jnfans fernandus de Serpa. E.ª M.ª CC.ª Lxxx.ª iiij.ª2. Trata-se do registo da morte do infante Fernando de Serpa, neutro e despojado de qualquer adjectivação que nos informe sobre a natureza do seu passamento, não mencionando sequer os supostos bens que seria normal deixar para aniversário. Dificilmente ultrapassaria o anonimato das palavras que aquele livro da morte encerra, não fosse a especificidade vocabular que o identifica e qualifica perante os demais: na qualidade de senhor, possuidor de potestas, territorializada no nome da sua terra; depois, na sua pertença à mais importante linhagem nobiliárquica, a da realeza. Ascendência régia evocada no título infans que antecede o seu nome, com o qual eram designados os filhos e filhas de reis, sobretudo a partir do início do século XIII.
A morte surpreendeu-o no dia 19 de Janeiro de 1246, a ter como certo o registo do referido Obituário. Nascido, com toda a probabilidade, em Santarém no mês de Março de 1218, cidade que o seu pai escolheu para estacionar durante todo o Inverno, de Dezembro de 1217 a Abril do ano seguinte (um documento datado de Março de 1218, passado em Santarém, ainda não inclui Fernando entre os filhos de Afonso II, enquanto que num outro do mesmo mês ele já aí consta como fazendo parte da sua filiação), teria 28 anos à data da sua morte. Filho do consórcio do rei Afonso II, neto de Afonso Henriques, e da rainha D. Urraca, filha de Afonso VIII de Castela, o que venceo a batalha das Naves de Tollosa, era o terceiro filho varão, irmão mais novo dos infantes Sancho, o herdeiro da coroa, e Afonso, aquele que irá ter grande protagonismo ocupando o trono na sequência da guerra civil de 1245-1248, e da infanta D. Leonor, efémera Rainha, a que casou em 1229 com o rei Waldemar III da Dinamarca.
Uma morte jovem, prematura até. Pelo menos assim o entendemos hoje; porém, a realidade daqueles tempos tão longínquos é outra, de mais difícil apreensão. Então, a esperança média de vida podia não ultrapassar os 32 anos, a chamada maioridade atingia-se bem mais cedo e o turbulento período da sua juvenilitas já tinha passado havia muito. O tempo apenas, porque as turbulências, essas permanecem como o traço mais marcante da sua personalidade, ou pelo menos o mais evidente. De qualquer modo, uma morte tão jovem não pode deixar de nos impressionar, sobretudo quando nos apercebemos da imensa vitalidade, o dito infante rufia, que demonstrou. Seriam estas as causas da sua morte? É possível que sim, que tenha tido uma morte violenta. Na verdade, o seu testamento, a ter existido, não se conhece, e quanto ao paradeiro do seu túmulo nada se sabe, apesar de se levantar a hipótese de a sua sepultura se encontrar na igreja catedral de Burgos, da qual sua mulher foi generosa benfeitora e com a qual transacionou algumas propriedades. Ou talvez em Lamego, que o regista no seu livro de óbitos (para reforçar a hipótese de Lamego, devemos acrescentar que Fernando de Serpa manifestou um grande interesse por esta região na última fase do seu percurso político; seria, portanto, muito natural, que tivesse tomado algumas diligências para aí ficar sepultado aquando da sua morte)». In Armando Sousa Pereira, O Infante Fernando de Portugal, Senhor de Serpa (1218-1246), História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante, Estudo apresentado em Setembro de 1997, Seminário “A nobreza medieval portuguesa: parentesco, identidade e poder”, dirigido por Bernardo Vasconcelos Sousa, revista Lusitânia Sacha, 2ª série, 10, 1998.

Cortesia de LSacha/JDACT

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «… com processos sistemáticos de crítica e utilização de fontes documentais, cabe às histórias gerais sobre Portugal, neste trabalho, a primeira palavra sobre os acontecimentos em torno do reinado de Sancho II»

jdact

Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
«(…) Do que se escreveu sobre aquele reinado tudo deve ser percorrido com rigor e espírito crítico, procurando compreender essas obras à luz dos contextos em que foram criadas. A compreensão dos géneros, dos públicos-alvo, dos destinos sociais e culturais premeditados, da sua integração em ideologias predominantes ou minoritárias. A governação de Sancho II e todas as suas vicissitudes foram encaradas de diversas maneiras, sob várias abordagens, todas elas criadoras de uma imagem determinada do rei, que ocupa, hoje, no nosso imaginário colectivo, um lugar específico. Apesar do carácter fragmentário e esparso em que muitos desses textos se baseiam, da insuficiência qualitativa e quantitativa de muitas fontes, de orientações de pesquisa desfocadas ou insuficientes, da não existência de um registo documental daquele período tratada criticamente, o certo é que uma imagem se reteve na história dos portugueses e dos seus reis, e que no caso de Sancho II não é muito lisonjeira. A inutilidade governativa deste monarca e a sua aflitiva incapacidade para dirigir, a sua inexistência como líder, são como flashes constantes na historiografia portuguesa dos séculos XIX e XX. A tese do rex inutilis vingou e, se nalguns casos, poucos, mais recentes, o estudo da acção daquele monarca foi integrada em contextos mais abrangentes, associados a uma ideia de Crise, com carácter mais vasto e profundo e amarrada a um complexo cronológico mais dilatado aos dois reinados anteriores, a mensagem predominante ainda associa aquele rei a um período negro e infeliz da monarquia portuguesa, dominado pelo fantasma da incapacidade do Estado em se afirmar sobre o tecido vivo que o compõe.
Em 1209, na cidade de Coimbra, nasce o primeiro (são, também, filhos deste casamento os infantes Afonso, futuro conde de Bolonha e rei de Portugal, a infanta D. Leonor e o infante D. Fernando de Serpa; é neto, pelo lado materno do rei de Castela, Afonso VIII e de Leonor de Inglaterra) filho de D. Afonso II e de D. Urraca (infanta de Castela; filha do grande Afonso VIII, o herói cristão de Navas de Tolosa). Baptizado com o nome de seu avô, o infante Sancho será um dos monarcas mais infelizes da história portuguesa. Mal preparado para a governação de um país ainda em formação a sua subida ao trono ocorre, com pouco mais de treze anos, a 25 de Março de 1223, data do falecimento de seu pai e as circunstâncias não podiam ser piores. Naturalmente a estrutura curial do final do reinado de Afonso II parece ter-se mantido em funções, pelo menos durante algum tempo. Com base nos documentos que nos chegaram, da sua chancelaria, de instituições eclesiásticas, de casas nobiliárquicas, de concelhos municipais ou de simples particulares; das bulas pontifícias de Gregório IX, Celestino II e Inocêncio IV ou de fontes narrativas posteriores, ideologicamente marcadas e contaminadas, procurámos reconstituir alguns dos aspectos fundamentais desse reinado.
No seu conjunto o volume de informação disponível sobre o período de 1223 aos inícios de 1248 apresenta-se disperso por um conjunto de fontes documentais e narrativas, que foram apreciadas e utilizadas pela historiografia portuguesa, quer a do Antigo Regime, quer a mais próxima dos nossos tempos. De características bem distintas, com forte vínculo ao universo cronístico ou mais relacionadas com processos sistemáticos de crítica e utilização de fontes documentais, cabe às histórias gerais sobre Portugal, neste trabalho, a primeira palavra sobre os acontecimentos em torno do reinado de Sancho II. Um outro aspecto que gostaríamos de salientar na elaboração da primeira parte deste trabalho relaciona-se com a forma como apresentamos as várias posições historiográficas sobre o reinado de Sancho II. Numa primeira abordagem, pareceu-nos que essa caracterização pudesse ser feita por modelos historiográficos, onde as várias visões sobre Sancho II pudessem ser observadas com maior coerência. E, continua a parecer-nos uma opção válida. Contudo, optámos por desenvolver um conspecto historiográfico ordenado por critérios cronológicos, desenvolvendo para cada um dos autores que nos pareceram mais pertinentes, as posições tomadas em relação à matéria disponível sobre a forma como a estrutura central e os subsistemas periféricos se relacionavam entre 1223 e 1245. Pensamos que este método, além de não desvirtuar as linhas metodológicas de cada uma das Histórias observadas, nem de as retirar dos complexos historiográficos e dos estímulos externos onde e com que foram produzidas, nos permitia observar o seu carácter evolutivo, e nesse aspecto percebermos, também, a evolução historiográfica das representações sobre Sancho II». In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT

domingo, 29 de dezembro de 2013

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «… cada uma delas observável nos documentos e nas narrativas que impregnam este reinado. Cada uma delas disputada por este rei, “um dos mais obscuros da nossa história”»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eram tempos de ...roubo e malfeitoria..., expressões constantes nos documentos que traduzem um estado de agitação e violência, que acabam por precipitar o País numa guerra civil, travada entre os partidários do rei e aqueles que contra a realeza se manifestavam, ou melhor, aqueles que se perfilavam contra a centralização do poder levada a cabo pelo rei e sua cúria. Mas o reinado de Sancho II marca, também, o predomínio dos cavaleiros cristãos nas terras alentejanas. O esforço de guerra que, nos reinados anteriores, serviu para garantir ao monarca, através do alargamento dos seus domínios, um controlo razoável das tensões aristocráticas, parece agora não se revelar tão eficaz, no sentido de debelar um cada vez maior sentimento de revolta contra o poder régio. É o quadro destas instabilidades que pretendemos estudar. As suas origens, os seus processos evolutivos, o estado e a forma das instituições políticas na transição do poder de Afonso II para Sancho II e subsequentemente para Afonso III, a acção da cúria régia, como órgão fundamental na estratégia da acção do Estado e no controlo da sociedade portuguesa de meados do século XIII.
Da guerra nos campos do Alentejo e a tentativa de controlo das passagens algarvias, contra um inimigo comum, à luta civil que leva à deposição do rei, pretendemos observar o quadro de tensões e fracturas que caracterizaram este reinado e que marcam o Portugal de 1223 a 1248 como um País onde ocorre uma grave crise política. E se a visão interna nos orienta a curiosidade, também não podemos deixar de fora o contexto internacional e a dinâmica de uma Cristandade da qual o reino português faz parte. A dinâmica relacional com as monarquias peninsulares, os conflitos e as composições entre este Centro nacional e a Santa Sé, a observação comportamental dos diferentes universos políticos, entre os quais Portugal se coloca, a influência e introdução progressiva de novos sistemas de organização política e social, a turbulência do sistema dualista, caracterizado pelo diálogo interminável entre o modelo canónico e o direito civil, herdeiro do sistema romano, são aspectos que nos prendem e que se tornam vitais e funcionais na percepção do conflito funcional do rei. Bonus rex, rex inutilis, duas faces, cada uma delas possível de ser aplicada aos soberanos, cada uma delas observável nos documentos e nas narrativas que impregnam este reinado. Cada uma delas disputada por este rei, um dos mais obscuros da nossa história, mas um dos que levou mais longe o estandarte do reino e também o único a ser vítima de um conceito de poder superior.
Como mais alguns reis do seu tempo, e até imperadores, Sancho II de Portugal travou conhecimento de muito perto com a teoria da superioridade papal sobre as administrações civis. Soube, de facto, o significado do conceito de Plenitudo Potestatis. Rex inutilis? Veremos.

Sancho II de Portugal. Um conspecto historiográfico
Do Conspecto
Qual é a memória que nos resta de Sancho II, o quarto rei de Portugal? Da sua vida, dos seus feitos, da sua governação, das suas desditas, do seu fim? Existe uma necessidade imperiosa: a da reconstituição, a mais rigorosa possível, daqueles tempos e do que neles sucedeu. E se não conseguimos apreender a vida, tal como ela era, as suas palpitações, as suas tragédias, o seu quotidiano pleno, cheio de acções e sensações, podemos pelo menos procurar compreender e explicar alguns comportamentos e atitudes do colectivo português durante grande parte da centúria de Duzentos. E podemos fazê-lo com os textos e fontes escritas, mais ou menos coevas, e com as interpretações que as várias décadas de interpretação e síntese histórica foram capazes de produzir sobre aquele rei e as variadas peripécias do seu reinado. E estas interpretações, por vezes tão diferentes, permitem-nos assentar, desde já num primeiro problema em torno deste reinado: o problema historiográfico.
A questão é fazer o ponto da situação sobre os conhecimentos existentes e fixados em torno daquele monarca. Como é que ao longo do processo historiográfico português, se foi edificando e transmitindo o conhecimento e a memória que hoje possuímos sobre Sancho II? Do que nos resta das fontes, da historiografia que as abordou e sobre elas estruturou informação, da forma como o ensino da história, nas suas várias épocas, tratou este rei, da imagem formada, clara ou distorcida, e propagandeada, destinada muitas vezes a cumprir objectivos actuais e que pouco tinham a ver com a rigorosa reconstrução da história, das diferentes obras e autores que sobre o rei capelo se pronunciaram, de tudo isto queremos falar, e com tudo isto pretendemos marcar um momento, o ponto actual sobre o estado da nação entre os anos de 1223 e 1248».

In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT

sábado, 28 de dezembro de 2013

Festas que se fizeram pelo Casamento do rei Afonso VI. Ângela Barreto Xavier, Pedro Cardim, Fernando Bouza Álvarez. «Porém, ‘a bondosa Inglaterra’ assegurava aos castelhanos, em segredo, que mais tarde ou mais cedo lhes entregaria a cidade de Lisboa, o que contrariava as pretensões da terra lusa»

jdact

Reddit Quod Recipit. Imagens das Festas de Casamento de Afonso VI
«(…) Mas naquele princípio de Verão de 1666 preparava-se esse evento que viria a ser considerado o mayor triumpho, que pôde ser que o mundo haja visto. Não só pelos arcos que davam passagem de umas ruas para as outras, desde Alcântara até à Sé, mas também pelas danças, pelas, folias que o Senado tinha contratado para animarem as ruas e mostrarem aos reis como a cidade os amava; ou pelas casas que, ornadas com as mais caras tapeçarias, pareciam querer dizer o mesmo.

«Lutos rompendo vem, rindo formoza a Luza aurora, a nós dando em fiansa doutro mais bello sol, rica esperança»

Dois de Agosto de 1666. A manhã estava soalheira e as águas do Tejo brilhavam. Por fim, a capitânia francesa que trazia de terras de França a já rainha de Portugal, podia dar entrada no porto da cidade de Lisboa. Aguardara uns dias na barra de Cascais, esperando que os ventos fossem favoráveis à entrada, não fossem os barcos encalhar em alguns escolhos, logo em semelhante ocasião. Um mês antes, em La Rochelle, tinham decorrido as formalidades, com todas as cerimónias que se costumavam fazer nas entradas dos reis de França, recepções e, finalmente, o casamento por procuração, em que o marquês de Sande representara o rei de Portugal e o duque de Laon a princesa d'Aumale. A rainha devia estar cansada. A viagem tinha sido longa, e muito acontecera desde a sua partida de Paris até atracar na parte mais ocidental da Europa. Um certo receio a acompanhara, durante o mês que estivera no mar. Os tempos não eram de paz, e mesmo a carta de seguro que o Rei Cristianíssimo obtivera de Carlos II de Inglaterra não garantia completamente a sua protecção em relação aos ataques dos corsários de Sua Majestade Britânica. Para já não falar nos piratas por conta própria. Em qualquer caso, os navios que Luís XIV enviara eram dos melhores da armada francesa, o que provava que o rei queria que Maria Francisca chegasse com toda a segurança às terras portuguesas. Não fora ele, afinal, um dos que tinham acarinhado tal união? Para Luís XIV o casamento era um meio de prolongar a guerra entre Portugal e Espanha o que, evidentemente, favorecia os interesses franceses. Para esse rei havia que tornar a guerra contra Castela cada vez mais violentas, o que explicava alguns dos esforços que a coroa francesa fazia no sentido de ajudar a causa dos Braganças. António Sousa Macedo, secretário de Estado entre 1662 e 1667, já o adivinhara nos anos cinquenta desse século.
O português dissera, na altura, que à França interessava que Castela estivesse dividida com Portugal, pois assim não só não se lhe opunha, como ainda favorecia as suas tentativas de conquistar territórios que estavam sob tutela castelhana. Também Duarte Ribeiro Macedo, ministro português na corte francesa, estava ciente dos mesmos interesses diplomáticos. Os interesses de França eram incompatíveis com os de Castela, e mesmo o tratado dos Pirenéus não mudara muito o cenário, apesar de por ele se ter concluído o casamento entre Maria Teresa de Áustria, filha de Filipe IV e Luís XIV monarca francês, e uma aparente paz entre ambos os países. A dita paz estava próxima da ruptura em 1665, segundo Ribeiro Macedo, já que as intenções de França em submeter Castela eram cada vez mais evidentes. Tal tensão entre ambos os reinos, que lutavam pela hegemonia na cena europeia, favorecia a causa portuguesa. Dava, também, uma certa razão a Sousa Macedo que, uma década antes, aconselhara Portugal a gerir a situação de determinada maneira no que dizia respeito à França: fazendo guerra contra Castela (de modo a activar as esperanças francesas) ou mostrando que caminhava para a paz (criando-lhe um certo temor), como parecia acontecer com as negociações que se travavam com Castela nas quais a Inglaterra era intermediária. Porém, a bondosa Inglaterra assegurava aos castelhanos, em segredo, que mais tarde ou mais cedo lhes entregaria a cidade de Lisboa, o que contrariava as pretensões da terra lusa. Desta forma ambígua pareciam harmonizar-se os vários interesses políticos em questão». In Ângela Barreto Xavier, Pedro Cardim, Fernando Bouza Álvarez, Festas que se fizeram pelo Casamento do rei Afonso VI, Quetzal Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-564-268-6.

Cortesia de Quetzal/JDACT

Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal. D. João II. Manuela Mendonça. «Uma outra ideia nos ocorre: não teria sido com essa intenção que o monarca chamou ao reino Justo Baldino? Justo Baldino chegou ao reino, segundo Joaquim Veríssimo Serrão não antes de 1466. Ora nesta data tinha o Príncipe 11 anos»

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Educação
«(…) Ou a hipótese que levantámos se concretiza ou outros mestres, que por qualquer motivo não foram divulgados, participaram na formação intelectual de João. Tem-se alvitrado que os próprios mestres do rei tenham sido, posteriormente, os professores do Príncipe; contudo nada se pode provar documentalmente ou por escritos coevos. Apenas as recompensas dadas a esses homens poderiam esclarecer, mas a verdade é que nada lhes foi atribuido por João II. Nem mesmo Afonso V aparece a compensar os eventuais mestres de seu filho; apenas se verifica a concessão de uma tença de dois mil reais brancos anuais, feita por este monarca a Estevão Nápoles em 1450, portanto muito antes do príncipe nascer e, por isso, sem ter a ver com a sua educação. João II, ao contrário do que fez com Cataldo Sículo a quem, no dizer de Luis Matos, o rei beneficiou largamente concedendo-lhe em 1488 uma primeira tença de trinta mil reais, e uma segunda, em 1493, de dez mil reais..., nada atribuiu a estes mestres, como ficou dito. Se tivessem sido seus professores certamente o faria, pois recompensou outros como o mestre-escola Martim Afonso, concedendo-lhe desde Janeiro de 1494 a tença anual de seis mil reais brancos (...) e o gramático Fernando Afonso, mestre do Príncipe, pois que recebeu até à sua morte, em 1523, a tença de cinco mil e oitocentos e setenta reais. Do exposto podemos concluir que os mestres italianos que vieram à corte para educar Afonso V nada tiveram a ver directamente com a educação do Príncipe.
Aos educadores que parece terem sido escolhidos por seu pai, teria o Príncipe ficado a dever os ensinamentos que Resende sintetizou em ler, rezar e latim e escrever. Estaremos assim perante aqueles que teriam sido os iniciadores de João II nas lides intelectuais, mas nada mais que isso. E a nossa questão mantem-se pertinente: porque não chamou Afonso V homens de craveira para formar o Príncipe? Uma outra ideia nos ocorre: não teria sido com essa intenção que o monarca chamou ao reino Justo Baldino? Apesar de Carolina Michaelis afirmar que não consta que Justo Baldino tenha endoutrinado a D. João II, inclinamo-nos a pensar que sim. Afinal este dominicano italiano, doutor in utroque iure, teria sido chamado a Portugal apenas para que também os feitos de guerra e paz dos reinantes da primeira dinastia, narrados por Fernão l,opes na Primeira Parte das Crónicas, assim como a vida de João I, e o seu insigne Condestável, fossem geralmente sabidos? E possível; mas se acompanharmos a vida deste frade em Portugal, algumas dúvidas podem surgir. Justo Baldino chegou ao reino, segundo Joaquim Veríssimo Serrão não antes de 1466. Ora nesta data tinha o Príncipe 11 anos. Mas mesmo que a sua vinda se desse um ou dois anos mais tarde, vinha muito a tempo de ser seu mestre. Recordemos que Mateus Pisano chegou a Portugal cerca de 1446, data em que Afonso V teria os seus 14 anos, idade ideal para a formação específica do monarca; ora, Justo Baldino, a ter chegado a Portugal na data em hipótese, encontraria, pois, João com 11 ou 12 anos de idade. Por isso, embora não tenhamos disso notícia, inclinamo-nos muito à hitótese de que este dominicano humanista, referendário assistente do Papa Sisto IV tenha sido chamado para a formação específica do Príncipe. A sua recompensa teria sido a nomeação para bispo de Ceuta ao redor de 1480. A sublinhar esta hipótese registe-se que, apesar do cargo, nunca Justo Baldino se fixou no norte de Africa, o que parece significar que o Rei preferiu que ele permanecesse na corte; e em 1488 lá estava ele junto do monarca, presidindo à cerimónia do baptismo de Bemoim, segundo informou o cronista; terá morrido de peste, por volta de 1493, sem que tivesse deixado o mínimo sinal da Obra que se afirma ter sido chamado a executar. No mínimo parece estranho que um homem que foi chamado para um trabalho específico tenha passado mais de vinte e cinco anos em Portugal sem, ao menos parcialmente, o haver realizado. Isso só pode significar que teve outros afazeres e um deles, o principal, foi, do nosso ponto de vista, a formação do Príncipe. De resto não se explica que Afonso V tivesse descurado essa faceta. Assim retomamos a hipotese por nós avançada, com a convicção de que a mesma corresponde à realidade, embora seja impossível demonstrá-la. Pensamos, pois, que o rei não quis ir contra a facção da nobreza que o rodeava e que temia que as ideias políticas do infante Pedro fossem reintroduzidas em Portugal; como as mesmas teriam a ver com a presença dos mestres italianos, Afonso V aceitou, inicialmente, não os chamar; contudo, culto como era, não se podia impedir de querer proporcionar a seu filho os ensinamentos dos grandes mestres. Nesta indecisão optou por uma via discreta; não chamou oficialmente um mestre estrangeiro para João; conseguiu-o, no entanto, ao mandar vir de Itália frei Justo Baldino, um sabio dominicano e doutor em ambos os Direitos, para trasladar a latim as chronicas dos reis de Portugal; mas esta foi, evidentemente, a razão oficial, porque camuflado estava o objectivo visado: que o dominicano viesse a ser o Mestre que ainda não tinha sido dado a João; no fundo tudo aconteceu um pouco à semelhança do que, anos mais tarde, João II também viria a fazer, mas por motivos diferentes, quando chamou Cataldo Sículo que, vindo oficialmente para serviço do monarca, acabou por ser escolhido para mestre de Jorge. Retomando o procedimento de Afonso V, constatamos que a sua atitude não levantava suspeitas, já porque o fim a que vinha o Mestre estava bem definido, já porque os Dominicanos eram objecto da protecção de Afonso V e durante o seu reinado ensinavam Teologia na Universidade de Lisboa». In Manuela Mendonça, D. João II, Um Percurso Humano e Político nas Origens da Modernidade em Portugal, Imprensa Universitária 87, Editorial Estampa, Lisboa, 1991, ISBN 972-33-0789-8.

Cortesia de Estampa/JDACT