domingo, 10 de março de 2019

Memorial do Convento. José Saramago. «Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púcaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se…»

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«(…) São pensamentos confusos, que isto diriam se pudessem ser postos por ordem, aparados de excrescências, nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar, Sete-Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade, Em nada, e contudo já pensou tudo isto, e mais ainda que foi lembrar-se dos seus próprios ossos, brancos entre a carne rasgada, quando o levavam para a rectaguarda, e depois a mão caída, arredada para o lado pelo pé do cirurgião, Venha outro, e aquele que aí vinha, coitado, bem pior iria ficar, se escapasse com vida, sem as duas pernas. Quer um conhecer os mistérios, e para quê, quando deveria bastar-lhe acordar de manhã e sentir, adormecida ou desperta, a mulher que veio com o tempo, o mesmo tempo que amanhã a levará, quem sabe se para outra cama, enxerga posta no chão, como esta, leito de embutidos e festões de ouro, que não faltam, dar e levar, trocar e trazer, e é loucura ou tentação do diabo perguntar-lhe, Por que comes tu pão, tendo fechados os olhos, se não o comendo és cega, não o comas para não veres tanto, Blimunda, porque ver como tu vês é a maior das tristezas, ou sentido que ainda não podemos suportar, E tu, Baltasar, em que pensas, Em nada, não penso em nada, nem sei se alguma vez pensei alguma coisa, Eh, Sete-Sóis, arrasta para aqui essa manta de toucinho.
Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púcaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos. Passou a manhã, foi hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia, não esqueçamos, e enfim levanta-se Blimunda, descidas as pálpebras, faz Baltasar a sua segunda refeição, ela para ver não come, ele nem assim veria, e depois saem de casa, o dia está tão sossegado que nem parece próprio para estes acontecimentos, Blimunda vai à frente, Baltasar atrás, para que o não veja ela, para que saiba ele o que ela vê, quando lho disser. E isto lhe diz, A mulher que está sentada no degrau daquela porta tem na barriga um filho varão, mas o menino leva duas voltas de cordão enroladas ao pescoço, tanto pode viver como morrer, a sabê-lo não chego, e este chão que pisamos tem por cima barro encarnado por baixo areia branca, depois areia preta, depois pedra cascalha, pedra granita; no mais fundo, e nela há um grande buraco cheio de água com o esqueleto de um peixe maior que o meu tamanho, e este velho que passa está como eu estou, de estômago vazio, mas vai-se-lhe a vista, é o contrário de mim, e aquele homem novo que me olhou tem o seu membro de homem apodrecido de venéreo, purgando como uma bica, enrolado em trapos, e apesar disso sorri, é a sua vaidade de homem que o faz olhar e sorrir, prouvera que não tenhas tu destas vaidades, Baltasar, e sempre te aproximes de mim limpo, e ali vai um frade que leva nas tripas uma bicha solitária que ele tem de sustentar comendo por dois ou três, por dois ou três comeria mesmo que a não tivesse, e agora vê aqueles homens e aquelas mulheres ajoelhados diante do nicho de S. Crispim, o que tu podes ver são persignações, o que tu podes ouvir são pancadas no peito, e as bofetadas que por penitência dão uns nos outros e a si próprios, mas eu vejo sacos de excrementos e de vermes, e ali uma nascida que vai estrangular a garganta daquele homem, não o sabe ele ainda, amanhã saberá, e será tão tarde como já é hoje, porque é sem remédio». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT