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«(…) São
pensamentos confusos, que isto diriam se pudessem ser postos por ordem,
aparados de excrescências, nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar,
Sete-Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade, Em nada, e contudo
já pensou tudo isto, e mais ainda que foi lembrar-se dos seus próprios ossos,
brancos entre a carne rasgada, quando o levavam para a rectaguarda, e depois a
mão caída, arredada para o lado pelo pé do cirurgião, Venha outro, e aquele que
aí vinha, coitado, bem pior iria ficar, se escapasse com vida, sem as duas
pernas. Quer um conhecer os mistérios, e para quê, quando deveria bastar-lhe
acordar de manhã e sentir, adormecida ou desperta, a mulher que veio com o
tempo, o mesmo tempo que amanhã a levará, quem sabe se para outra cama, enxerga
posta no chão, como esta, leito de embutidos e festões de ouro, que não faltam,
dar e levar, trocar e trazer, e é loucura ou tentação do diabo perguntar-lhe,
Por que comes tu pão, tendo fechados os olhos, se não o comendo és cega, não o
comas para não veres tanto, Blimunda, porque ver como tu vês é a maior das
tristezas, ou sentido que ainda não podemos suportar, E tu, Baltasar, em que pensas,
Em nada, não penso em nada, nem sei se alguma vez pensei alguma coisa, Eh,
Sete-Sóis, arrasta para aqui essa manta de toucinho.
Não dormiu ele, ela não dormiu.
Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios
e beber um púcaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do
jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando
enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que
esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.
Passou a manhã, foi hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia,
não esqueçamos, e enfim levanta-se Blimunda, descidas as pálpebras, faz
Baltasar a sua segunda refeição, ela para ver não come, ele nem assim veria, e
depois saem de casa, o dia está tão sossegado que nem parece próprio para estes
acontecimentos, Blimunda vai à frente, Baltasar atrás, para que o não veja ela,
para que saiba ele o que ela vê, quando lho disser. E isto lhe diz, A mulher
que está sentada no degrau daquela porta tem na barriga um filho varão, mas o
menino leva duas voltas de cordão enroladas ao pescoço, tanto pode viver como
morrer, a sabê-lo não chego, e este chão que pisamos tem por cima barro encarnado
por baixo areia branca, depois areia preta, depois pedra cascalha, pedra
granita; no mais fundo, e nela há um grande buraco cheio de água com o
esqueleto de um peixe maior que o meu tamanho, e este velho que passa está como
eu estou, de estômago vazio, mas vai-se-lhe a vista, é o contrário de mim, e
aquele homem novo que me olhou tem o seu membro de homem apodrecido de venéreo,
purgando como uma bica, enrolado em trapos, e apesar disso sorri, é a sua
vaidade de homem que o faz olhar e sorrir, prouvera que não tenhas tu destas
vaidades, Baltasar, e sempre te aproximes de mim limpo, e ali vai um frade que
leva nas tripas uma bicha solitária que ele tem de sustentar comendo por dois
ou três, por dois ou três comeria mesmo que a não tivesse, e agora vê aqueles
homens e aquelas mulheres ajoelhados diante do nicho de S. Crispim, o que tu
podes ver são persignações, o que tu podes ouvir são pancadas no peito, e as
bofetadas que por penitência dão uns nos outros e a si próprios, mas eu vejo
sacos de excrementos e de vermes, e ali uma nascida que vai estrangular a
garganta daquele homem, não o sabe ele ainda, amanhã saberá, e será tão tarde
como já é hoje, porque é sem remédio». In José Saramago,
Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998,
ISBN 972-21-0026-2.
Cortesia de Caminho/JDACT