«(…) E
como hei-de eu acreditar que tudo isso é verdade, se tu vais explicando coisas
que eu não posso ver com os meus olhos, perguntou Baltasar, e Blimunda
respondeu, Faze com o teu espigão um buraco naquele lugar e encontrarás uma
moeda de prata, e Baltasar fez o buraco e encontrou, Enganaste-te, Blimunda, a
moeda é de ouro, Melhor para ti, e eu não deveria ter arriscado, porque sempre
confundo a prata com o ouro, mas em ser moeda e valiosa acertei, que mais
queres, tens a verdade e o lucro, e se a rainha por aqui passasse eu te diria
que está outra vez prenha, mas que ainda é cedo para saber se ocupou de varão
ou fêmea, já dizia minha mãe que a matriz das mulheres o mal é ter enchido uma
vez, logo quer mais e sempre, e agora te digo que começou a mudar o quarto da
lua, porque sinto os olhos a arderem-me e vejo umas sombras amarelas a passar diante
deles, são como piolhos caminhando, remexendo as patas, e são amarelos,
mordem-me os olhos, pela salvação da tua alma te peço, Baltasar, leva-me para
casa, dá-me de comer, e deita-te comigo, porque aqui adiante de ti não te posso
ver, e eu não te quero ver por dentro, só quero olhar para ti, cara escura e
barbada, olhos cansados boca que é tão triste, mesmo quando estás ao meu lado
deitado e me queres, leva-me para casa, que eu irei atrás de ti, mas com os
olhos baixos, porque uma vez jurei que nunca te veria por dentro, e assim será,
castigada seja eu se alguma vez o fizer.
Levantemos agora os nossos próprios
olhos, que é tempo de ver o infante Francisco a espingardear, da janela do seu
palácio, à beirinha do Tejo, os marinheiros que estão empoleirados nas vergas dos
barcos, só para provar a boa pontaria que tem, e quando acerta e eles vão cair
no convés, sangrando todos, um e outro morto, e se a bala errou não se livram
de um braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilo, enquanto os
criados lhe carregam outra vez as armas, bem pode acontecer que este criado
seja irmão daquele marinheiro, mas a esta distância nem sequer a voz do sangue
é possível ouvir, outro tiro, outro grito e queda, e o contramestre não se
atreve a mandar descer os marujos para não irritar sua alteza e porque, apesar
das baixas, a manobra tem de ser feita e dizermos nós que ele não se atreve é
ingenuidade de quem de longe está olhando, porque o mais certo é nem sequer pensar
esta simples humanidade, Lá está aquele filho da pu… a dar tiros nos meus
marinheiros que vão para o mar a descobrir a Índia descoberta ou o Brasil
encontrado, e em vez disso dá ordem para que venham lavar o convés, e sobre
esta matéria não temos mais que dizer, que tudo viria a dar em repetição
fastidiosa, afinal, se há-de o marinheiro levar um tiro fora da barra, de um
corsário francês, melhor é que lho dêem aqui, morto ou ferido sempre está na
sua terra, e por falarmos de corsário francês, vão os nossos olhos mais longe,
lá no Rio de Janeiro, onde entrou uma armada daqueles inimigos, e não
precisaram de dar um tiro, estavam os portugueses a dormir a sesta, tanto os do
governo do mar como do governo da terra, e tendo os franceses fundeado a seu bel-prazer,
desembarcaram, eles sim que parecia que estavam na sua terra, a prova foi que o
governador deu logo ordem formal para que ninguém tirasse nada de casa, lá
teria as suas boas razões, pelo menos as que o medo dá, tanto que os franceses
deram eles saque a tudo o que encontraram, e com o que não fizeram recolher aos
navios armaram uma venda no meio da praça, que não faltou quem ali fosse
comprar o que roubado lhe fora uma hora antes, não pode haver maior desprezo, e
deitaram fogo à casa do fisco, e foram aos matos, por denúncia de judeus, a
desenterrar o ouro que certas pessoas principais tinham escondido, e isto sendo
os franceses apenas dois ou três mil e os nossos dez mil, porém estava o
governador feito com eles, não há mais que saber, que, entre portugueses
traidores houve muitas vezes, ainda que nem tudo seja o que parece, por
exemplo, aqueles soldados dos regimentos da Beira de quem dissemos que
desertaram para o inimigo, não desertaram, antes foram para onde lhes dariam de
comer, e outros houve que fugiram para as suas casas, se isso é traição, é o
que está sempre a suceder, quem quiser soldados para entregar à morte há-de ao
menos dar-lhes de comer e de vestir, enquanto estiverem vivos, e não andarem
por aí descalços, sem trabalhos de marcha e disciplina, mais gostosos de pôr o
próprio capitão na mira da espingarda do que de estropiar um castelhano do
outro lado, e agora, se quisermos rir do que estes nossos olhos vêem, que a
terra dá para tudo, consideremos o caso das trinta naus de França que já se
disse estarem à vista de Peniche, ainda que não falte quem diga tê-las avistado
no Algarve, que é perto, e na dúvida se guarneceram as torres do Tejo, e toda a
marinha se pôs de olho alerta, até Santa Apolónia, como se as naus pudessem vir
rio abaixo, de Santarém ou Tancos que isto de franceses é gente capaz de tudo,
e estando nós tão pobrezinhos de barcos pedimos a uns navios ingleses e
holandeses que aí estão e eles foram pôr-se na linha da barra, à espera do
inimigo que há-de estar no espaço imaginário, já em tempos antes contados se
deu aquele famoso caso da entrada dos bacalhaus, e agora veio-se a saber que
eram vinhos comprados no Porto, e as naus francesas são afinal inglesas que
andam no seu comércio, e de caminho vão-se rindo à nossa custa, bom prato somos para galhofas estrangeiras». In
José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª
Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.
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