«(…) Que também as temos excelentes da nossa lavra, é bom que se
diga, esta tão claramente vista à luz do dia que não foram precisos os olhos de
Blimunda, e foi o caso que certo clérigo, costumeiro em andar por casas de
mulheres de bem fazer e ainda melhor deixar que lhes façam, satisfazendo os
apetites do estômago e desenfadando os da carne, e sempre pontualmente dizendo a
sua missa, quando lá lhe parecia alçava levando os bens que lhe estavam à mão,
e tantas fez que um dia a ofendida, a quem muito mais se tirara fio que o tudo
que dera, tirou ela ordem de prisão, e indo os oficiais e agarradores a
cumpri-la por ordem do corregedor do bairro, a uma casa onde o clérigo já
estava vivendo com outras inocentes mulheres, entraram, mas tão desatentos à
obrigação que não deram com ele, que estava metido numa cama, e foram a outra
onde lhes pareceu que estaria, assim dando vaza para que o padre saltasse, nu
em pêlo, e, disparando escada abaixo, a murro e pontapé limpou o caminho, ficaram
gemendo os quadrilheiros pretos, mas conforme puderam, cainçando, correram
atrás do padre pugilista e garanhão, que já lá ia pela Rua dos Espingardeiros,
e eram isto oito horas da manhã, começava bem o dia, gargalhadas pelas portas e
janelas, ver o clérigo a correr como lebre, com os pretos atrás, e ele de verga
tesa, e bem apeirado, benza-o Deus, que um homem tão dotado o lugar dele não é
a servir nos altares mas na cama de serviço às mulheres, e com este espectáculo
padeceram grande abalo as senhoras moradoras, coitadas, assim desprevenidas,
como desprevenidas e isentas estariam as que se achavam rezando na igreja da
Conceição Velha e viram entrar o padre resfolgando, em figura de inocente Adão,
mas tão carregado de culpas, sacudindo badalo e guisos, à uma apareceu, às duas
se escondeu, às três nunca mais foi visto, que nesse passe de mágica deu
a diligência dos padres que o recolheram e deram fuga pelos telhados, já
vestido, nem isto é sucesso que cause estranheza, se em cestos içam os
franciscanos de Xabregas mulheres para dentro das celas e com elas se gozam,
por seu próprio pé subia este padre a casa das mulheres que lhe apeteciam o
sacramento, e para não fugirmos ao costumado fica tudo entre o pecado e a
penitência, que não é só na procissão da Quaresma que saem à rua as disciplinas
excitantes, quantos maus pensamentos hão-de ter de confessar as senhoras
moradoras da baixa de Lisboa e as devotas da Conceição Velha por tão rico padre
terem gozado com a vista, e os quadrilheiros atrás dele, agarra, agarra, quem
pudera agarrá-lo para uma coisa que eu cá sei, dez padre-nossos, dez
salve-rainhas, e dez réis de esmola ao nosso padre Santo António, e, estar
deitada uma hora inteira, com os braços em cruz, de barriga para baixo como à
prosternação convém, de barriga para cima que é posição de mais celestial gozo,
mas sempre levantando os pensamentos, não as saias, que isso ficará para o
próximo pecado.
Usa cada qual os olhos que tem para
ver o que pode ou lhe consentem, ou apenas parte pequena do que desejaria,
quando não é por simples obra de acaso, como Baltasar, que por trabalhar no
açougue veio com os mais moços de carga e cortadores ao terreiro, a ver chegar
o cardeal Nuno Cunha que vai receber o chapéu das mãos de el-rei, acompanha-o o
enviado do papa numa liteira toda forrada de veludo carmesim com passaranes de
ouro, dourados também os painéis, e ricamente, com as armas cardinalícias de um
lado e do outro, traz um coche de respeito, que não leva ninguém dentro, só o
respeito, mais uma estufa para o estribeiro e para o secretário doméstico, e
também o capelão que leva a cauda quando a cauda tem de ser levada, e vêm dois
coches castelhanos a deitar por fora capelães e pajens, e à frente da liteira doze
lacaios, que somando a isto tudo os cocheiros e liteireiros é uma multidão para
servir um cardeal só, quase íamos esquecendo o criado que lá vai adiante com a
maça de prata, lembrou a tempo, feliz povo este que se regala de tais festas e
desce à rua para ver desfilar a nobreza toda, que primeiramente foi a casa do
cardeal buscá-lo, depois o vem acompanhando até ao paço, aonde já Baltasar não
pode ir nem entram os olhos que tem, mas conhecendo nós as artes de Blimunda,
imaginemos que ela aqui está, veremos o cardeal subindo por entre fileiras de
guardas, e entrando na última casa do dossel sai el-rei a recebê-lo e ele lhe
deu água benta, e na casa seguinte ajoelha el-rei numa almofada de veludo, e o
cardeal noutra, mais atrás, diante de um altar ricamente armado, onde logo diz
missa um capelão do paço, com todas as cerimónias, e acabada ela tira o enviado
do papa o breve de nomeação e o entrega a el-rei que o recebe e devolve para
que o leia, por assim determinar o protocolo, não porque el-rei não tenha seus
fumos de latinista, feito o que recebe el-rei das mãos do enviado o barrete
cardinalício e o põe na cabeça do cardeal, esmagado de cristã humildade claro
está, que são cargas demasiadas para um pobre homem ser assim íntimo de Deus». In
José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª
Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.
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