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de wikipedia e jdact
«Que o meu canto seja no meio do
temporal uma chicotada de vento que estremeça as estrelas desfaça mitos e
rasgue nevoeiros, escancarando sóis!» In Manuel da Fonseca
«(…) Veio um dia, e vimo-nos
obrigados a mudar de rumo. Quisemos acertar o passo, segundo as regras, e
começaram as topadas, escorregadelas, desvios. No dia-a-dia enviusado e traiçoeiro
da vila, onde muitos dos choramingas da escola ganhavam dinheiro grosso e honestas
reputações, nós caímos de desilusão em desilusão. Não sei como isto foi. Mas,
anos depois, vencido, eu emagrecera; secara, nodoso e cheio de rugas, como o
tronco carcomido de um sobreiro. Pelo contrário, derrotado na luta inglória com
o forreta do pai, André Juliano engordou, engordou muito. Apesar disso, quando às
vezes o olhava, com aquele olhar distraído mas que, de súbito, parece atingir a
verdade que há nos homens e nas coisas, eu julgava estar a ver-me diante de um
espelho côncavo. Sim, senhor, tal qual como eu : todas as raivas, todos os
ciúmes, as invejas, os fracassos, mas inchado e balofo. Nestes momentos, o ódio
contraía-me as feições, e largava um palavrão. Fitava-o com o olhar endurecido:
estamos tramados, André, estamos tramados! Nunca consegui saber se ele
adivinhava os meus pensamentos; o certo, é que me respondia de beiço caído,
como num eco: tramados, amigo, tramados...
Olho o relógio. Quatro horas.
Doidas, as moscas tecem um emaranhado de círculos em volta dos cemitérios.
Ponho-me a observá-las, e faço cálculos sobre qual dos papéis cobertos de
melaço peganhento atrairá a primeira. Por fim, cansado, caio numa modorra. Um murmúrio
distante vem devagar, engrossa, até soar nitidamente dentro de mim. É a voz autoritária
de mestre Poupa bombeiro. Vejo-o e oiço-o como se realmente ele estivesse sentado
à minha mesa. Fogo?!, exclama a voz. E, logo, desiludida, já não há
incêndios... Era o seu assunto preferido. Mestre Poupa tinha artes de ir
desviando qualquer conversa até aparecer com naturalidade o caso de um fogo. Hoje
em dia, já não há incêndios, comentava ele. Vejam vocês: toca o sino da igreja;
a auto-bomba desce do quartel, puxa-se a mangueira e, pronto!, está o fogo
apagado. Fogo?... Qual fogo, se nem deixamos atear nada! Lá isso é verdade,
concordava eu, inquieto. Vinha-me à ideia Antoninha das Dores e, muito embora
preferisse calar-me, era certo acrescentar. É isso mesmo... Já não há incêndios...
Como que saindo da névoa do fumo
do tabaco que enche o Café, André Juliano surge do outro lado da mesa. Enrola
um cigarro entre os dedos enormes, e os olhos, caídos, desaparecem-lhe sob a
gordura das pálpebras. Abana a cabeça, suspirando: já não há nada... Até dá
doença uma vida destas!... Ora lá disse você uma verdade. Isto, hoje, até dá
doença. Porque seria que eu me fiz amigo de mestre Poupa? Sempre que me
interrogo a este respeito, ocorrem-me várias razões capazes de justificar o
facto. Mas, a todas abandono e acabo por concluir que foi obra do acaso. Por
esse tempo, a vila andava acesa em discussões originadas pela acção dos
bombeiros voluntários. As coisas não podem continuar assim!, dizia-se alto e em
bom som. As coisas, era isto: fogo que houvesse, os prejuízos maiores
não os faziam as chamas ruas os bombeiros improvisados, na ânsia de tudo
molharem e de tudo salvarem. Abriam caminho à machadada, arrombavam tabiques,
partiam mobílias e loiças, sem dó nem piedade. Estragos do lume apenas uma que
outra chaminé, ou um carunchoso soalho.
Enfim, chegaram a tais termos que
um dia, ao declarar-se incêndio na chaminé do Elias Tarro, como alguém corresse
a puxar o badalo da igreja velha, o homem postou-se entre os umbrais da porta
de espingarda em riste: quem entrar, morre! E impediu que os bombeiros lhe
assaltassem a casa, enquanto, com baldes de água, pelo quintal, a família
apagava as labaredas. Choveram ameaças e insultos, de parte a parte. À má cara,
os bombeiros abandonaram a presa. E, não era passada uma semana, quando o Elias
Tarro apareceu com a cabeça cheia de pensos e ataduras. Fora o Chico Biló que o
esmurrara, após breve discussão. Ao pagar a conta na farmácia do Durães onde
andara a tratar-se, Elias Tarro deu graças pelo preço em que lhe ficara o
incêndio.
Vá lá... Antes isto que os
malandros me terem invadido a casa. Mas a vila, aterrada, mudou a direcção dos
bombeiros voluntários. E, por cartas, ajustou com um técnico de Lisboa a chefia
da mal afamada corporação. Foi mestre Poupa quem apareceu. Dias depois, já eu
passava horas a ouvi-lo. Havia sido um incêndio que me arruinara a vida, e para
ele os incêndios, que o tinham enchido de glória, eram agora a causa da sua amargura.
O material moderno, as muitas bocas de água espalhadas pelas ruas e a técnica moderna
tornavam, conforme nos dizia, a extinção fácil e rápida, o que era impossível antigamente.
Só queria que vocês assistissem ao incêndio da rua de Madelena, lá em Lisboa.
Isso é que foi um fogo bom!, recordava ele, animado e feliz. Morreram dezenas
de pessoas». In Manuel da Fonseca, O Fogo e as Cinzas, Wikipedia, 1951, Editorial
Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-431-7.
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